terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Gerações

GERAÇÕES
Jaqueline Gomes de Jesus
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Publicado no Correio Braziliense (clique aqui para ver).
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Não tenho filhos, mas adoro crianças.
Em minha formação como psicóloga não me aprofundei em desenvolvimento infantil, minhas pretensões eram unicamente profissionais, meu foco outro.
Nos últimos anos, compensando de forma manca essa falha, tenho refletido, lido e assistido diferentes fontes sobre como criar crianças felizes, o que me fez ver a forma como filhos têm sido criados por pais ultimamente, e me apavorei. É dispensável entrar em detalhes a respeito. Antes, darei um exemplo, a partir de uma experiência recente.
Voltando de avião a Brasília, de uma oficina que ministrei em Salvador, reservei a janela, como sempre faço quando é possível. Estava ocupada por uma garotinha entre 5 e 6 anos de idade. Disse-lhe, sorrindo, que aquele era meu assento. Ela se negou a sair. Perguntei-lhe sobre seu pai, ela não sabia onde estava. Logo, postei minha bolsa e algumas sacolas no banco do meio e me sentei no do corredor, aguardando o adulto.
Enquanto isso, a animadíssima menina me apresentou seu tablet, e as dezenas de fotos com efeitos especiais que tinha tirado: dela mesma, da mãe, do irmão e do pai. Algumas em momentos íntimos da família. Primeira lição: falta de privacidade e domínio tecnológico caminham juntos.
O pai chegou, e pediu, repito, pediu que sua filha saísse, o que me chamou a atenção. Ela não aceitou o pedido e ele deixou por isso mesmo, agradecendo-me pela indulgência de ceder meu lugar.
Fui condescendente, errei. Não foi a atitude correta para uma cidadã. Eu deveria ter reclamado que o pai retirasse a criança da poltrona que eu reservara, mas abri mão de meu direito para não desagradar a pequena que se divertia. Isso não foi bom para mim, para o pai, nem para ela. Como adulta, eu também era responsável pela garota, mas me eximi disso, culpando o pai por quaisquer problemas que adviessem, e não demoraram.
Mal decolamos, ela pediu para ir ao banheiro. Pacientemente arrumei minha bagagem para que eles passassem. Acho que o adulto notou o contratempo gerado, mas parecia continuar aceitando a normalidade da situação. Eles demoraram a voltar.
O pai tirou o tablet das mãos da menina para ler seus e-mails e alguns jornais. No meio da viagem começamos a conversar sobre a política local em Brasília, lembrando do episódio recente em que o diretor-chefe da Polícia Civil foi demitido por críticas ao governador.
Ele me revelou ser médico, e acusou os meios de comunicação da capital federal de, entre outras coisas, de não tratar bem a sua classe profissional.
O inesperado aconteceu. A menina tossiu seco e regurgitou sobre si mesma. O pai, assustado, acorreu com uma sacolinha de plástico e acionou o comissariado, que não podia atender porque passávamos por uma turbulência. Ele inquiria: “Por que não me avisou, filha”?
Tentei ajudar lhe dando mais sacos para vômito e papéis-toalha, enquanto ele trocava a blusinha. Quando a situação se acalmou, perguntei o que estava acontecendo com a garotinha. Ele me explicou que ela sempre tem náuseas quando viaja, de carro ou de avião.
Pensei: se ele sabia disso, e sendo médico, porque a deixou ficar na janela?
Daí por diante ela ficou muito triste e calada, e o pai incomodado. Pousamos, eu disse para a garotinha que ela melhoraria e me despedi dos dois.
Encontrei meu marido e comentei com ele sobre o ocorrido. Segunda lição: os pais orientam seus filhos, dentre outras razões, para protegê-los de decisões que possam prejudicá-los e a terceiros.
Refletindo sobre o episódio, nós nos perguntamos o quanto uma geração pode crescer sofrendo com amores permissivos. As crianças são inocentes, os adultos, não.
E não podemos só culpar os outros pelos erros, também temos de nos penitenciar pelas vezes em que não exigimos das autoridades que ajam conforme o papel que lhes cabe.
Isso tem tudo a ver com a politicagem praticada não apenas na Capital Federal. Precisamos amadurecer como cidadãos, parar de culpar “quem é de fora”, “os políticos” ou “a mídia” pelas mazelas da nossa sociedade, da comunidade. Também temos responsabilidade quando, para não desagradar, silenciamos.
Se quisermos um bom futuro para nossa cidade, precisamos atentar para como estamos cuidando e os exemplos que damos às gerações que desembarcarão depois de nós.
Termino a crônica compreendendo que a comecei com uma inverdade. Na vida em sociedade, todos nós temos filhos, somos mais ou menos responsáveis pelos adultos que eles se tornam. Filhos não são apenas os que geramos, mas também os que criamos.
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