Figura: Kimpa Vita (Dona Beatriz), Santa do Congo, 1684-1706. Artista: Raita Steyn. Fonte: http://kineticslive.com/2012/10/29/kimpa-vita-dona-beatriz-1684-1706-saint-of-congo
Jaqueline Gomes de Jesus
Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Pós-Doutora pela Escola Superior de Ciências Sociais e História da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ProfHistória/UFRRJ)
Em comparação com as principais religiões monoteístas (Judaísmo, Catolicismo e Islamismo), as de matriz africana apresentam uma abertura maior à diversidade sexual e de gênero (mesmo que, no correr dos últimos séculos, as lideranças e seguidores destas tenham aderido fortemente ao pensamento LGBTfóbico prevalente na tradição judaico-cristã, e que foi espalhado pelos continentes afetados pelo imperialismo colonial).
Isso é facilmente atestado por quem conhece alguns itãs (ensinamentos da cultura iorubá) e lendas que se referem aos Orixás, Inquices e Voduns, mas também quando se pesquisa registros historiográficos da presença aberta dos chamados "affeminados" em terreiros, desde o Século XIX. Isto é um reflexo das culturas de onde os ramos principais destas religiões advieram, principalmente dos povos Banto, Iorubá, Jeje e Nagô. Em contraponto ao senso comum, considero importante ressaltar que as pessoas LGBTs são anteriores às religiões.
Xica Manicongo foi denunciada como sodomita durante a primeira visitação da Inquisição a Salvador, em 1591, por manter o hábito quimbanda, de sua terra natal, de prender para a frente o nó do pano da costa que a cobria, o que a evidenciava, na cultura soteropolitana de então, que ela era praticante do "pecado nefando".
Ao tornar-se enredo da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti em 2025, personificando uma pombagira, ela enuncia uma certa "modernidade" da presença trans, do ponto-de-vista dos nossos contemporâneos, porém é, sobretudo, uma memória, ou melhor, um vestígio, no sentido arqueológico mesmo, de uma civilização africana em transição, o Reino do Congo do século XVI.
Reconhecida como quimbanda, ela fazia parte de um grupo que denominaríamos, em nosso linguajar de hoje, como formado por gays afeminados, travestis ou mulheres trans; tratado pejorativamente, pelos cristãos europeus, como formado por feiticeiros sodomitas; porém em Angola e no Congo, o termo "invertido", sentido literal da sua denominação, era atribuído a agentes religiosos, conhecidos como nganga marinda, pessoas capazes de se comunicarem com o mundo espiritual, em acordo com a tradição, e não contra ela. Daí o sentido positivo da inversão na lógica banto. As invasões portuguesas, que contava, com as "milícias de Cristo", combateram ferozmente essa e outras tradições não-europeias, sendo a face religiosa da guerra colonialista.
O julgamento do corpo de Xica evidencia os primeiros impactos desse embate transcontinental, que teve resistências, de maneiras particulares em cada território. Processos de dominação social, política e econômica aprofundaram a forma católica de vida, no que viria ser institucionalizado como Brasil, e igualmente entre os governantes do Reino do Congo, os Manicongos, que no século XVII já adotavam nomes católicos (outrora reservados apenas aos escravizados pelos lusitanos). Um exemplo da aculturação complexa é o de Kimpa Vita, Dona Beatriz, conhecida como a Santa do Congo, que se batizou como cristã, entretanto desenvolveu uma teologia afrocentrada e combatia os portugueses.
Fundado em 1995, o Quimbanda-Dudu, grupo gay negro da Bahia, adotou "Francisco Manicongo" como seu patrono (o nome social Xica e o tratamento feminino dado a ela é uma formulação posterior, iniciado pelo movimento social trans, em especial o carioca), destacando sua condição de "homossexual que recusava-se a vestir roupa de homem". A reconstrução da história, para nós que nunca fomos vistas como protagonistas dela, geralmente não é uma genealogia, em um sentido higienizado ou uniforme, que nos foi ensinada hegemonicamente, colocando uma certa imagem de masculinidade em seu núcleo. Remontar as vidas de mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTs demanda uma forma transdisciplinar de fazer história, uma outra História, associando diferentes métodos, a partir de uma perspectiva feminista, antirracista e antiLGBTfóbica, muito semelhante, ao meu ver, a como montamos mosaicos, colando os cacos de que dispomos, a fim de compôr uma cena.
Indicações de leitura:
JESUS, Jaqueline Gomes de. XICA MANICONGO: A transgeneridade toma a palavra. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, pp. 250–260, 2019. https://www.e-publicacoes.uerj.br/re-doc/article/view/41817
MARIA, Salete. XICA MANICONGO: 1ª travesti do Brasil, Bahia - 1591. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2025.
MOTT, Luiz. HOMOSSEXUAIS DA BAHIA. Dicionário biográfico: Séculos XVI-XIX. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 1999.
QUIMBANDA DUDU. BOLETIM DO QUIMBANDA-DUDU, n. 2. Salvador: Editora do Grupo Gay da Bahia, 2000.
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