sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A Passagem do Amigo

Eu vou relatar uma estória, como ela me foi contada no começo da minha juventude e nos limites da minha memória fraca apesar da pouca idade, pela minha tia Marilene, com a finalidade de retratar para mim, de forma didática, a índole da nossa família materna.
Meu finado avô Jonas, minha avó Terezinha e minhas tias e tios mais velhos ainda moravam em Santo Antônio do Itambé, interior de Minas Gerais, na região do Serro — em meados dos anos 60 eles se mudariam todos para Brasília, com a permissão do vô, onde nascera.
Nesse tempo, numa noite quando minha tia Marilene, então uma moça com visão plena (já vivendo na capital federal, ela perderia grande parte da visão devido a um problema de saúde pouco estudado), acompanhou de uma das janelas da casa humilde na qual morava com seus doze irmãos e irmãs — e que eu conheci uns quarenta anos depois do ocorrido que estou começando a recontar — a saída de seu “papai”, como todas minhas tias e tios se referiam a ele, e de um amigo dele, cujo nome ela deve ter me dito mas do qual não me lembro, para se divertirem numa vila vizinha.
Ela fez questão de ressaltar que, na época, a cidade não dispunha de rede de energia elétrica, e por isso se dependia da intensidade da luz da Lua — não me explicou se era Cheia, apenas que tornava razoavelmente visíveis os vultos — para se enxergar minimamente os caminhos dos homens à noite. Eles subiram a ladeira, que muitos anos depois receberia calçamento de paralelepípedos.
Hoje eu perguntaria à minha tia se minha avó chegou a fazer algum comentário sobre a noitada do meu avô, só para ter certeza. Porém era evidente para mim que naqueles idos do século XXI mulheres interioranas, casadas e com pencas de filhos não tinham liberdade e tampouco permissão para expressarem o que pensavam e sentiam acerca dos quereres e fazeres de seus maridos.
Continuando: ela na janela vendo meu avô e seu amigo sumindo nas sombras. Como não tinha mais nada para ver, pois a rua estava vazia, fechou a janela — de madeira como continua sendo — e foi se juntar aos demais no interior da casa.
Como é de conhecimento público, “tarde da noite” naquela época sem iluminação pública era razoavelmente depois do pôr-do-sol. As crianças já estavam dormindo, enquanto os demais, se não estavam deitados, passavam o tempo conversando baixinho no escuro ou varrendo o piso de terra batida perto do fogão de lenha, que ainda está lá.
A leitores contemporâneos, o retorno do pai deveria ser uma preocupação. Não era, não para aquela família, especialmente não no Itambé, um lugarejo perdido no meio do mundo, onde as pessoas se conheciam do nascimento ao enterro. E quando os homens saiam para se entreterem, sempre voltavam na manhã seguinte, não importando o seu estado.
Praticamente todos dormiam ou cochilavam quando minha tia Marilene desperta com batidas na janela. Despreocupada, vai atender, e ingênua como a maioria dos dali sequer pergunta quem é, abre, e se depara com o amigo do vó:
— Filha, avisa sua mãe que Seu Jonas vai chegar mais tarde. — solicitou, educadamente. — Eu não vou pra casa, se minha mulher perguntar por mim amanhã, diz que eu passei aqui e estou bem — afirmou, sem o menor tom de preocupação.
Ela não respondeu, certamente por causa do sono, porque sempre foi demasiadamente faladeira, apenas meneou a cabeça, indicando concordância e cerrou novamente a janela enquanto o amigo do seu pai ia embora sem dizer mais palavras. Minha impressão imatura, no tempo em que me foi contado isso, era que eles eram mal educados por não se despedirem. Com a minha cabeça de hoje eu acho que, como esse povo sempre se todos os dias, praticamente “dormindo juntos”, etiqueta não era algo necessário para as relações sociais.
Pois bem, ela estava tão sonolenta que esqueceu da incumbência junto à mãe e acompanhou a cidade inteira que dormitava. E nada mais aconteceria naquela noite, como era normal.
O Sol mal nasceu e o galo começou a cantar, despertando a todos: minha vó acende o fogo, com a ajuda das meninas. Meu avô ia chegar logo e a primeira coisa que iria querer seria café e queijo.
E ele chegou mesmo:
— Terezinha! — chama de fora, nunca levava chave, pois sempre tinha a mulher para lhe abrir a porta, e ela vai.
Ao encarar o Seu Jonas vê que está acompanhado de um homem estranho. E minha tia Marilene ouve a conversa:
— Mulher, o ------- morreu no bar!
“O quê?”, pensa minha tia, em consonância com a pergunta de minha avó, porém complementando em pensamento o que minha vó Terezinha não falou: “Mas como? Ele falou comigo ontem, eu já ia avisar mamãe... eu esqueci de avisar ela”! — e fica preocupada em sofrer alguma punição, por mais incoerente que isso pareça.
— A gente tinha chegado há um tanto, tava conversando e chegou uma inimizade dele, eles começaram a brigar só com palavra, aí o homem deu um tiro nele, matou o ------- na hora! — explicou Seu Jonas.
A casa inteira ficou transtornada com a notícia, especialmente minha tia Marilene. Meu avô prossegue:
— Esse senhor veio comigo de lá pra gente contar pra mulher do -------, amparar ela. O corpo ficou pra buscarmos mais tarde, não tinha mais quem ajudasse a trazer. Os homens saem e minha vó junto, antes ordenando aos filhos, como todos os severos pais de outrora:
— É pra vocês ficarem aqui em casa, não é pra vocês saírem!
As crianças e as moças obedeciam sem nem mesmo levantar os olhos, tinham introjetado o medo da vara que tanto doía.
Tia Marilene ficou o resto do dia remoendo consigo a conversa com o amigo do papai. Não contou a ninguém. E me disse que jamais falou com ninguém, antes de mim, sobre isso, nem mesmo à mulher do amigo. Sabia que iam chamá-la de mentirosa. E conclui afirmando:
— Eu falei com ele depois de morto, aqui a gente da casa da sua vó tem dessas coisas, mas a gente não conversa sobre elas.
Estava aí apresentada a moral da história, segundo minha tia. Fiquei me sentindo uma privilegiada confidente dela.
Sou psicóloga, e por mais que evite e desminta quem diga isso, faço muitas análises e releituras de minhas atitudes passadas, e as das pessoas que conheci e conheço ao longo da vida.
O que sei é que, na verdade, juntando os pedaços de tudo o que ouvi durante a infância e o início da adolescência, histórias sobre espíritos eram cotidianas na casa da minha vó, não aquelas sobre anônimos, mas acerca de pessoas próximas, até mesmo parentes, contadas pelas tias, até onde sei, pelo menos para mim:
“Quando algum de nós morre fica na casa durante uma semana, esbarrando nas coisas”.
“Quem morre às vezes nos fala das coisas enquanto dormimos”.
“Eu vejo os mortos assim que morrem” — essa é a minha tia Marilene.
No meio disso tudo, o ápice foi o ensinamento de minha vó Terezinha, que quando eu lhe confessava o meu medo do escuro (sem detalhar se temia fantasmas ou “bonequinhos escuros”, como minha Tia Marlizinha lamentavelmente me assustava, falando deles), replicou:
— A gente não deve ter medo dos mortos, e sim dos vivos.
Cresci apegada a tal orientação.
Agora é agosto, mês do folclore. É igualmente, o mês em que, coincidentemente, quase todas as minhas tias aniversariam, incluindo minha vó e minha falecida mãe.
Pessoas tão queridas, com suas loucuras e segredos partilhados aqui e ali, principalmente com as pessoas nas quais confiam, muitas vezes só pelo prazer de passar uma história à frente.

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