quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Psicopatologia, Psiquiatrização, Preconceito


A série The Crown, da Netflix, sobre a Monarquia Britânica, apresenta no quarto episódio da terceira personagem a Princesa Alice, mãe do Príncipe Philip, marido da Rainha Elizabeth II.

Entre muitos aspectos que me chamaram a atenção, um em especial me tocou. Resolvi pesquisar a respeito, confirmando a sua veracidade e gravidade.

Após ter sido diagnosticada com esquizofrenia paranóide nos anos 30 do século XX, foi internada em um sanatório na Suíça, para ser tratada por Sigmund Freud.

Freud acreditava que os delírios de Alice eram causados por frustração sexual. Como tratamento para "curar" a sua "histeria", ele a submeteu a tratamento por eletrochoque e raios X nos seus ovários, para induzi-la a uma menopausa precoce.

A triste estória da Princesa Alice é, lamentavelmente, uma pequeniníssima amostra dos sofrimentos inflingidos pela lógica patologizante a grupos historicamente discriminados, neste caso, às mulheres, que até hoje são rotuladas como "histéricas" pelo senso comum/psicologia popular machista/sexista.

Pode ser difícil, mas tente imaginar o que enfrentaram os MILHÕES de mulheres cisgêneras, pessoas negras, LGBTIs e de outras populações oprimidas institucionalizadas compulsoriamente em hospícios ou outros espaços totais de "reforma/reeducação" mental, como o famoso hospital colônia de Barbacena, categorizadas em determinados quadros psicopatológicos (nosologia), geralmente com base em preconceitos reproduzidos pelo pensamento científico hegemônico.

Logo após a abolição da escravatura no Brasil, era comum pessoas negras sem trabalho serem presas por "vadiagem"; mulheres negras eram psiquiatrizadas e internadas. O mesmo acontecia com mulheres brancas que eram mães solteiras, mas cujas famílias não as aceitavam. Homossexuais, travestis e pessoas intersexo eram fotografados nus para estudo clínico, e  neles se injetavam substâncias para aplacar-lhes o desejo sexual, além do conhecido eletrochoque.

Sim, MILHÕES. Multidões submetidas a tratamentos aviltantes, para além do aprisionamento em si. Muitas vezes passando fome e sede, tendo de beber a própria urina. Morrendo logo e tendo seus corpos vendidos para variadas finalidades, entre elas para estudos de anatomia por parte de médicos. Não se pode esquecer dos casos de lobotomia.

O que antes era visto como pecado foi transformado em crime. E quando deixou de ser crime, foi rotulado como doença...

Ainda hoje lutamos para que identidades e formas de ser no mundo deixem de ser patologizadas. Quem é patologizado deixa de ser visto plenamente como pessoa, e que acredita nisto tende a tutelar, querer controlar o corpo da pessoa, decidir por ela, dizer quem ela é, onde ela pode estar, taxando-a como perigosa, desconsiderando sua autonomia e sua presunção de inocência: especialmente pessoas negras ou trans são pré-julgadas como perigosas/agressivas em potencial, de tal modo que sua mera presença em espaços de uso comum é, por quem as discrimina, tida como um risco. Os casos de expulsão de mulheres trans/travestis de banheiros femininos é um exemplo de como essa lógica excludente está naturalizada no pensamento social.

Atualmente, quando se lê criticamente códigos como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM, sabe-se que até a infância está sendo  psicopatologizada e medicalizada, dentro dos interesses da indústria farmacêutica, quando se reconhecem os abusos ocorridos no diagnóstico de crianças como hiperativas.

Não se esqueçam disso. Também não se omitam quando se depararem com essas situações fundamentalmente cruéis.

#saúdemental #patologização #despatologização #reformapsiquiátrica

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