JAQUELINE GOMES DE JESUS
Psicóloga, professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Eu poderia ter escrito este artigo tão-somente como um lamento pela atrocidade a que Roberta foi submetida, porém este não foi um único incêndio, talvez nem seja o último: eu me lembro do Galdino Jesus dos Santos, também queimado vivo, aos 45 anos, na madrugada de 20 de abril de 1997, após o Dia do Índio, no centro de Brasília, por cinco jovens que, ao avistarem aquele homem indígena, da etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe, deitado em uma parada de ônibus, resolveram, nas palavras deles, fazer uma “brincadeira”, dando-lhe um “susto”.
Os assassinos de Galdino foram julgados e condenados em 2001, atualmente são servidores públicos. Neste país onde nem todas as vidas importam, as desigualdades de classe têm cor, etnia, gênero, sexualidade, origem geográfica. As castas daqui são travestis, indígenas, negras, têm a calçada por casa.
É recorrente, no Brasil, que pessoas em situação de rua sejam assassinadas com o uso de fogo, o que lembra, de alguma forma, os autos de fé da Inquisição. Juízes e carrascos se confundem nestas terras desde que, em 1614, acusaram o Tupinambá Tibira de sodomia e o amarraram à boca de um canhão, no centro de São Luís, que foi disparado.
Este não é somente um obituário para os incendiados, muito menos um libelo punitivista. Eu escrevo como quem abre uma janela para a paisagem que nos cerca, mas de tanto observar esse cenário, diante de tanta dor, muita gente não quer mais ver, ou fica dessensibilizada, diante das florestas seguem sendo incendiadas, das chacinas no Rio de Janeiro, das centenas de milhares de brasileiros sucumbiram à COVID-19, das execuções de nossos representantes, como Marielle Franco, que seguem impunes.
Todas essas mortes poderiam ter sido evitadas, se o Estado não fosse comandado por parcelas da sociedade falaciosamente crentes de que suas concepções discriminatórias lhes conferem uma natureza superior às demais pessoas e espécies.
Se aprender significa mudar, as elites brasileiras, com a sua mentalidade colonizada, não aprenderam nada com os séculos de extermínio, escravidão e censura que infligiram ao nosso povo. Qualquer educação que lhes ensine uma lição diferente torna-se perigosa. Qualquer arte que retrate outros mundos possíveis é taxada de subversiva.
Ante às inversões da opressão disfarçada de normalidade, chega a ser um posicionamento ético repudiar qualquer desejo de retorno ao que vivíamos antes da pandemia, com vistas a um “novo normal”. Muito ao contrário, provavelmente deveríamos advogar o anormal, trabalhar para continuarmos sendo rotuladas como pessoas perigosas e subversivas, frente aos chamados “cidadãos de bem” com suas tradições: cultura do estupro, feminicídio, linchamento e queimas de arquivo.
A pergunta “Quantos mais têm que morrer?” não perturba os algozes, seus cúmplices e os apáticos. O grito incisivo de “Parem de nos matar!”, nestes tempos, soa quase como uma oração. Resta-nos exigir que as instituições nos defendam, alimentarmos a esperança de sobreviver e, como num sonho, à vista da escultura de Siron Franco que representa a morte de Galdino pelo fogo e uma pomba da paz; ou no Cais de Santa Rita, onde Roberta foi queimada; oxalá encontrar quem ainda partilha conosco alguma humanidade, e com este alguém nos comprometer que a gente fará o possível para continuar viva.
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