sábado, 4 de maio de 2013

O Ofício dos Músicos - uma reflexão

Foto de estátua de Santa Cecília, padroeira dos músicos. Fonte: http://aminhavidaeparati.wordpress.com/2012/11/23/santa-cecilia-rogai-por-nos
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O OFÍCIO DOS MÚSICOS - Uma reflexão
Jaqueline Gomes de Jesus
Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB e professora do Centro Universitário Planalto do Distrito Federal - UNIPLAN
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A profissão do músico é regulamentada no Brasil desde 1960, por meio da Lei 3.857/60. Na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, do Ministério do Trabalho e Emprego, o músico pode ser arranjador, interprete, regente, compositor ou musicólogo, configurando-se diversas famílias de ocupações. Neste texto se busca compreender tal ofício para além das atribuições legalmente estabelecidas, por meio de um olhar crítico da Psicologia Social e do Trabalho.
A forma como um trabalho é executado, segundo Borges e Yamamoto (2004), apresenta-se nas dimensões concreta (as condições materiais para realização do trabalho – instrumentos, ambiente), gerencial (como o trabalho é planejado, organizado e controlado – gestão), socioeconômica (a articulação entre a execução do trabalho e a conjuntura socioeconômica – ritmo de crescimento econômico, oferta de emprego), ideológica (o discurso justificador do trabalho, nas relações de poder – representação social do trabalho), simbólica (os aspectos subjetivos da relação do indivíduo com seu trabalho).
Então, ao pensar o ofício dos músicos, tem-se de ter implícitos os instrumentos de trabalho do músico (os instrumentos musicais, incluindo-se aqui a voz); seus ambientes variados de trabalho (festejos, bares, teatros, casas de espetáculo, estúdios et cetera); como esse trabalho é gerido pelo profissional; como o exercício de trabalho se relaciona às questões socioeconômicas, em especial as brasileiras; a percepção sobre a profissão por parte do profissional e o quanto ela se associa/dissocia da representação social da sociedade sobre a mesma; e, por fim, como cada músico, como profissional, relaciona-se com a sua profissão.
Além dessas dimensões estruturantes do trabalho, podemos pensar a questão do trabalho do músico colocando a questão da sua produtividade. O que produz o músico, como trabalhador? Música. Como classificar a produtividade desse trabalho? Pela quantidade? Pela qualidade? Por ambos?
Adam Smith (1994) e Karl Marx (1994) tratam a questão da produtividade diferenciando o trabalho improdutivo (que não agrega valor à matéria-prima) e o produtivo (que agrega valor à matéria-prima), nesse, o trabalhador produz mais-valia, e somente assim existe a possibilidade de se valorizar o capital — Produtividade, nesta análise, deve ser entendida puramente no sentido econômico, e não no artístico.
Há diferentes perspectivas acerca das atuações dos músicos: o profissional músico, quando compõe, manipula os elementos primordiais do som para produzir música e, no mercado de trabalho, utilizá-la — de modos variados — para ser remunerado, agregando valor, gerando mais-valia, garantindo, legalmente, direitos autorais. Seu trabalho é produtivo. Em termos de trabalho e capital essa condição não é diferente de quando ele interpreta uma composição pré-existente, reproduzindo-a integralmente, ou realizando uma interpretação original, pessoal, da composição, acrescentando elementos que possibilitem novas leituras da música.
Na presente leitura não se recai em uma concepção platônica de arte como cópia da cópia, recordando Platão (1994), a realidade observável como uma cópia da realidade ideal, havendo sempre um modelo original cujas cópias ou reproduções sempre seriam “inferiores”. Essa não é uma preocupação quando se pensa em trabalho.
Porém, conforme ensina Kothe (1981), a mímese não se restringe à imitação. A arte “cópia de cópias” influencia o comportamento das pessoas, é indissociável das questões políticas, de modo que a oposição entre o “mundo das idéias” e o “mundo sensível” é uma leitura platônica da dominação de classe: as condições materiais afetam a realidade, as ideologias reproduzem as condições estruturais da vida concreta. A arte não seria necessariamente cópia da realidade, mas, isso sim, cópia de alguma ideologia.
No que tange à música, Kandinski (1973, citado por Kothe, 1981) defendia uma música “verdadeira”, próxima do real, despreocupada em ser bela — a música dissonante de Schoenberg seria, então, uma música mais verdadeira que a de Mozart —, entretanto, Kothe alerta que a harmonia de Mozart nada tem a ver com sua época ou a de qualquer ser humano. A “salvação” da produção artística do destino de se tornar mera expressão de ideologias poderia ser a mímese como avesso da realidade, igual ao real pela não-identidade: abstrata, portanto mais concreta.
Aquém a estas discussões, a sociedade contemporânea é marcada pela naturalização da ideia (e da prática) de transformação do produto do ofício/trabalho em mercadoria, caracterizando-se pela necessidade de produzir em série, obviamente, para não apenas suprir as necessidades, carências e/ou anseios do público consumidor, mas para, objetivamente, aumentar o lucro do detentor do capital, o que não necessariamente se reverte para o bem-estar dos trabalhadores, geralmente aumenta apenas a parte que cabe ao capitalista.
Horkheimer e Adorno (1997) introduzem a arte contemporânea nessa realidade ao lembrarem que também seus produtos são industrializados para a reprodutibilidade em série, reproduzidos continuamente em Compact Disks ou DVDs, e agora, em discos Blue-Ray, perdendo a “aura/auréola” da execução pessoal que individualizava cada produto musical como “único”.
Podem-se ainda fazer algumas reflexões sobre o trabalho dos músicos abordando questões de gênero, mas elas mereceriam um artigo próprio.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Borges, L. O. & Yamamoto, O. H. (2004). O mundo do trabalho. Em J. C. Zanelli, J. E. Borges-Andrade & A. V. B. Bastos, Psicologia, organizações e trabalho no Brasil (pp. 24-62). Porto Alegre: Artmed.
Horkheimer, M. & Adorno, T. W. (1997). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Kandinsky, W. (1973). De lo espiritual en el arte. Barcelona: Barral Editores. Citado em Kothe, F. R. (1981). Literatura e sistemas intersemióticos. São Paulo: Cortez.
Kothe, F. R. (1981). Literatura e sistemas intersemióticos. São Paulo: Cortez.
Marx, K. (1994). Capital. Em Great books of the western world, vol. 50. Chicago: Encyclopaedia Britannica.
Platão. (1994). The republic. Em Great books of the western world, vol. 7. Chicago: Encyclopaedia Britannica.
Smith, A. (1994). An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. Em Great books of the western world, vol. 39. Chicago: Encyclopaedia Britannica.
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