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A publicação deste livro dá-se em uma época de crescente visibilidade das pessoas transgênero e das suas questões. Mas, também, em tempos em que a representação da alteridade em relação a estas pessoas se faz, não raro, por parte das pessoas cis, de modo a desumanizá-las, ao ponto de inviabilizar um reconhecimento de vínculo ético-moral com elas e, o mais grave, de modo a tornar possível sua eliminação. Tomo esta constatação como ponto de partida do trabalho aqui empreendido nestas linhas: prefaciar uma obra que materializa em terras tupiniquins, mais precisamente, em nosso panorama científico e de militância feminista, um campo teórico-conceitual já bastante profícuo e fértil no exterior.
Para tal tarefa, vale retomar outra obra, Precarious Life – The Powers of Mourning and Violence, da filósofa estadunidense Judith Butler, na qual a autora afirma que as pessoas que não têm oportunidade de representar a si mesmas correm um grande risco de serem vistas como menos humanas, de serem tratadas como menos humanas, ou mesmo, de nem serem vistas. Inicio por este ponto, pois o livro aqui prefaciado é, sem dúvida, um competente exercício à reflexão acerca das égides normativas que ditam como sexualidade e agência devem ser representadas e organizadas. O que se lê aqui é um conjunto de textos que, sob diferentes óticas e escritas, debruçam-se reflexivamente sobre uma questão: acerca de como os outros nos fazem reivindicações morais, constringindo-nos por meio de exigências morais, exigências estas que não pedimos, mas que também não somos livres para declinar. Percebe-se, nesta tarefa de reflexão coletiva e plural, a estratégia bem sucedida de combinar textos provenientes de diferentes contextos e de experiências bastante variadas que, materializadas nas escritas de cada capítulo, convergem para a problematização. Combinação esta feita de modo inteligente e organizada, mantendo a fluidez e, por vezes, a aridez necessária à leitura crítica e instigante.
A articulação das bibliografias apresentadas ao longo do livro e convidadas ao diálogo com quem o lê demonstra uma interlocução eficiente e necessária a este empreendimento intelectual comum sobre Transfeminismo. Ao mesmo tempo, promovem-se contrapontos e tensões, tanto no âmbito dos feminismos, quanto nos universos transgênero, e, sobretudo, entre eles. Neste sentido, a obra oferece um salutar efeito de renovação aos debates e produções de conhecimento produzidas sobre o tema, em língua portuguesa.
Considerando que se trata de uma publicação brasileira (com a preciosa contribuição de colegas de Portugal) vale retomar aqui a memória de alguns acontecimentos ocorridos recentemente no Sul das Américas, que demonstram a complexidade do tema. Em Maio de 2012, o Senado argentino aprovou um projeto legislativo de Identidade de Gênero, que ampliou os direitos da população transgênero. A partir da sanção da lei, é obrigado ao Estado garantir o reconhecimento ao gênero auto-concebido por cada cidadã e cidadão da Argentina, mesmo que o gênero auto-concebido não corresponda ao sexo atribuído à pessoa no momento de seu nascimento. Entre os direitos garantidos pela lei, está a possibilidade de que o nome, o sexo e a foto nos documentos de identidade sejam modificados por qualquer pessoa com idade superior a 18 anos que se perceba com um gênero diferente do registrado em sua certidão de nascimento. Assim como também as instituições da rede pública de saúde, bem como os planos de saúde privados deverão oferecer o acesso integral a operações e tratamentos hormonais, sem necessidade de autorização judicial ou administrativa. O texto legislativo, reconhecido internacionalmente como um dos mais avançados do mundo, atendeu demandas históricas da comunidade transgênero da Argentina. Por aqui, tramita no Poder Legislativo o Projeto de Lei N° 5.012/2013 – Lei de Identidade de Gênero, denominada Lei João Nery, que dispõe sobre o direito à identidade de gênero, dispondo também sobre os registros públicos, dentre outras providências. Vale lembrar que estamos atrasados em relação a nossos vizinhos continentais, pois no ano de 2009 o Uruguai já se tornara o primeiro país da América Latina a editar uma legislação de garantia do direito ao livre reconhecimento da identidade de gênero própria a cada pessoa. Os exemplos de Argentina e Uruguai colocam o Brasil em condição desfavorável e constrangedora. Por que em terras tupiniquins estes direitos são tão demoradamente garantidos e tão evidentemente violados, inclusive, pelo Estado? Como se processam os jogos de poder por meio dos quais alguma inteligibilidade da sociedade brasileira opera sobre a precariedade de algumas vidas, de modo a impedir que projetos de garantias de direitos sejam inseridos na legislação do país? O livro contribui para ampliar a envergadura das tentativas de respostas a estas questões e aprofundar as reflexões.
Ao longo da leitura (re)lembramos que desejos e prazeres podem ser vividos de várias maneiras, assim como angústia e dor. Nesta perspectiva, identidades de gênero são construídas através do modo como lidamos com nossos corpos, com nosso desejo e também da forma como nos relacionamos com o mundo e, sobretudo, do modo como o mundo se relaciona conosco. Afinal, construímos nossas identidades de gênero, identificando-nos social e historicamente com os modelos disponíveis, inteligíveis e, destarte, normalizados.
Há tempos, na obra O Contrato Sexual, Carole Pateman já argumentou contundentemente que a sexualidade condicionou a criação do contrato social moderno. Neste sentido, a própria origem do Estado moderno está ligada ao exercício da sexualidade e seus jogos de poder. Mas, para além de ser o dispositivo que permite a (re)produção da espécie, da sociedade, das instituições e das pessoas, a sexualidade é, sobretudo, (e felizmente!) algo que nos dá prazer e gozo. A leitura deste livro é prazerosa. Ao longo encontram-se constatações já bastante discutidas em arenas feministas, acerca do gênero como efeito de poder de complexas construções performáticas cotidianas, o que leva a entender que se constituir como sujeito gendrado é uma ação política múltipla de significados. A leitura permite também destacar a relevância ético-metodológica de se conceber a ciência como situada. Considerando, portanto, que as construções científicas são datadas, frutos da história, social e culturalmente constringidas, o que, contudo, não impede a produção de conhecimento por meio de sistemas de conceituação.
O livro contribui com a produção do conhecimento sobre Transfeminismo e nos alerta (literalmente em um de seus capítulos, mas como pano de fundo de todos os demais) que não se pode construir um movimento sociopolítico transfeminista sem um conhecimento objetivo e amplo das diversas formas de expressão afetivo-sexual das pessoas transgênero. A diversidade sexual e de gênero, complexa e poderosamente discutida aqui, traduz a multiplicidade e a variedade de possibilidades de leituras (e escritas) que potencializam o abalo que as estruturas conservadoras tanto temem. Sintetizando, e também para referenciar outros capítulos, pode-se considerar esta publicação como uma força no abalo (não sísmico, mas transmico) que tem sacudido a “normatividade careta”, inclusive, a de beca e toga.
Se, como discutido nestas páginas, as (trans)formações do movimento LGBT e também dos feminismos, trazem consigo sua expansão, ainda parece evidente a necessidade de que mulheres indígenas, negras, trabalhadoras sexuais, trabalhadoras rurais, trabalhadoras domésticas, travestis, trans, cis, enfim, que, sobretudo, pessoas de vida precária possam agenciar processos nos movimentos sociais. Estes escritos transfeministas demonstram que é preciso, por vezes, inclusive, borrar as fronteiras entre tais definições de pertença e articular criticamente múltiplas posições de sujeito com capacidade de agir e falar sobre aquilo que se faz sobre si e sobre os outros, e sobre o que os outros fazem sobre si. Ao ler este livro, questionamos: quem é mesmo o sujeito das reivindicações feministas? Quem reivindica (ou pode reivindicar) direitos igualitários a partir dos feminismos?
Tem-se aqui uma leitura que colocará em ação um giro do poder contra si mesmo, que se espera produzir modalidades alternativas de poder, a fim de estabelecer um efeito de contestação político-científica que não se trata de uma oposição ingênua das relações de poder no âmbito da academia ou dos movimentos sociais; mas sim, trata-se de um elaborado trabalho coletivo de enfrentamento à lógica que tem excluído pessoas trans da agenda e da produção político-científica, seja na militância, seja nas ciências. Espero que este livro exerça o poder de afetar e (trans)formar quem se lançar em sua leitura.
Juliana Perucchi
Juiz de Fora, 14 de julho de 2014.
Quero comprar esse livro. Onde e não estou conseguindo. Alguém pode entrar em contato comigo? alessiait@hotmail.it
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