quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Banheiros para Novos Apartados?

Por oportunidade do julgamento no Supremo Tribunal Federal quanto ao direito das pessoas trans utilizarem o banheiro conforme a sua identidade de gênero (Recurso Extraordinário - RE 845779, saiba mais em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=304438), derivado do direito à auto-determinação de gênero, no qual tive citado o meu e-book "Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos" (https://www.sertao.ufg.br/n/42117-orientacoes-sobre-identidade-de-genero-conceitos-e-termos), revisito artigo que publiquei em 2012, na Revista Jurídica Consulex:



BANHEIROS PARA NOVOS APARTADOS?
Jaqueline Gomes de Jesus*

Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 20 de abril deste ano, L. A., doutoranda em Ciências Sociais, foi impedida por quatro agentes de segurança de utilizar o banheiro feminino, segundo denúncia de uma professora da instituição, porque é transexual.

L. A. foi imediatamente conduzida ao banheiro masculino, embora afirmasse que tinha o direito de fazer uso do outro. Em resposta, ouviu de um dos seguranças que ele lhe “arrancaria a cabeça” e, ainda, a “cortaria inteira em pedaços”.

A professora denunciante, reconhecida pesquisadora dos corpos e gêneros, defensora dos direitos das pessoas transgênero (transexuais e travestis), liderou importante mobilização na universidade contra essa violência, questionando até que ponto chegaria a discriminação na instituição: “Teremos que apresentar nossas certidões de nascimento para usar os banheiros da Universidade”?

Ao se manifestar, a instituição aventou a possibilidade de institucionalização de um banheiro unissex, o que não me parece solução, mas opção impensada pela criação de um espaço estigmatizado e apartado para cidadãos considerados de “segunda classe”.

Em outra situação correlata, a pensionista A. L., travesti, processou um shopping de Belo Horizonte por danos morais, pelo fato de ter sido impedida de usar o banheiro feminino sob a alegação de um segurança de que uma mulher que usava o toalete argumentou que se sentiu ofendida com a sua presença.

A. L. recebeu estupefata a decisão do juiz de primeira instância, segundo o qual o ato do shopping foi correto, pois visava “preservar a própria segurança e ordem no uso do banheiro público reservado às mulheres”. Infere-se das palavras desse magistrado que travestis são naturalmente perigosas, acarretam risco para si e para os outros, e que é justo excluí-las ou expô-las aos perigos de uma pessoa com aparência feminina usar um banheiro masculino.

Para o professor Luiz Mott, da Universidade Federal da Bahia, a restrição no uso do banheiro, pelo fato de a pessoa ser transexual, é plenamente discriminatória, além de que, aduz: “Imagine o ‘rebu’ que causaria Roberta Close entrando em um toalete masculino de shopping ou no ‘banheirão’ lotado de homens em um estádio de futebol! Nenhuma mulher é barrada no toalete por não ter útero ou ovários, por esconder a careca debaixo da peruca ou por ter os seios de silicone”.

A discussão sobre os direitos das pessoas transgênero é recente, se comparada à histórica discriminação de que elas são alvo: incompreendidas, excluídas do convívio social, assassinadas.

Conforme dados do Projeto Europeu de Monitoramento do Assassinato de Pessoas Transgênero, o Brasil é o país em que ocorre o maior número desses homicídios. Nos últimos três anos, foram 325 ocorrências, do total de 816 em todo o mundo. O distante segundo lugar é do México, com 60 crimes.

Uma das vítimas desta violência, no país, foi uma jovem de apenas 17 anos. Ela tinha se mudado recentemente da capital Aracaju para a cidade de Lagarto, no interior do Estado de Sergipe, para trabalhar como faxineira. Foi alvejada no meio de uma rua, no dia 27 de outubro de 2011.

Em questões fundamentais como o compartilhamento no uso de banheiros públicos, a repulsa e o ódio irrompem, em diferentes níveis. Mas há reações individuais e coletivas a essa triste realidade, cada vez mais criticada.

Em 2001, em um shopping da cidade de Londrina, a travesti M. M. foi repreendida por seguranças ao tentar fazer uso do banheiro feminino. Registrou boletim de ocorrência e, como resposta à sua denúncia por discriminação, o Promotor de Defesa dos Direitos e Garantias Constitucionais, Paulo Tavares, declarou que o caso poderia ser enquadrado no art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal: “Compete ao Estado garantir o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

É uma obviedade afirmar que as pessoas precisam ter acesso a um banheiro. Entretanto, vê-se que ainda há muitos casos de pessoas transgênero, especialmente mulheres transexuais e travestis, sendo impedidas desse direito, geralmente por autoridades desinformadas. A iniquidade no acesso ao banheiro público tem sido uma das maiores barreiras para a integração de homens e mulheres transexuais na sociedade brasileira.

Apartheid. A palavra, originada da língua holandesa sul-africana, significa “à parte”. Na África do Sul, o termo definia a política de segregação entre os brancos e aqueles apontados como “não brancos”, com base em uma filosofia que reivindicava a supremacia ariana. As pessoas eram obrigadas a ocupar espaços diferentes, em função da sua cor, inclusive banheiros. Historicamente, a falta de banheiros femininos foi uma estratégia para manter mulheres fora de espaços tradicionalmente dominados por homens. Ressalte-se que apenas à época da constituinte um banheiro feminino foi instalado para as deputadas no Congresso Nacional.

Essa é uma questão de gênero que vem se repetindo, especialmente, com relação a homens e mulheres transexuais, preconceituosamente considerados “inferiores” aos homens e mulheres biológicos**. A identidade de gênero é fundamental para a vida pública e privada de qualquer ser humano, independentemente da sua anatomia ou fisiologia. Não reconhecer essa vivência leva ao sofrimento e a diversos constrangimentos.

Como resultado de toda essa discriminação, e por se recusarem a utilizar um banheiro para pessoas de um gênero com o qual não se identificam, pessoas transgênero têm sofrido problemas graves de saúde e o impacto de sua individualidade no meio social em que convivem, podendo ser demitidos dos seus empregos ou forçados a abandonar cursos em escolas e universidades.

O depoimento de uma mulher transexual pode ilustrar as consequências dessa prática nefasta. Aterrorizada pelo medo de ser impedida de usar banheiros públicos e de ser agredida ao ter sua condição de gênero identificada, afirma: “Já gastei tantas horas evitando banheiros públicos que minha bexiga ficou danificada e meus rins ficaram pressionados. O problema é diário, tenho de pensar em quanto bebi durante o dia, e se encontrarei pessoas que poderão me ajudar”.

Especialmente as mulheres transexuais estão conscientes de que, na realidade brasileira, em que a violência policial pode elevar-se a ponto de ser considerada intolerável, em uma ocorrência as populações discriminadas podem ser agredidas fisicamente ou encaminhadas a forças policiais que não compreendem a questão transgênero; uma simples oposição pode levar a acusações de resistência ou quaisquer outras.

Os casos de proibição do uso de banheiro público evidenciam uma lógica de discriminação, cuja mensagem é a de que pessoas transgênero são percebidas como uma ameaça, ou que é normal serem agredidas por outras, ignorantes, com percepções evidentemente estereotipadas e inconstitucionais.

De outro modo, quando se submetem ao absurdo de utilizar um banheiro masculino, não raro se tornam alvo de agressões e de abuso sexual. Em outras palavras, não gozam das mesmas proteções legais destinadas aos demais cidadãos, o que é explicitamente desumano.

Nessa esteira, é indispensável reconhecer que locais de trabalho, escolas e outros espaços públicos e privados precisam tornar os banheiros acessíveis e seguros também para as pessoas transgênero. Essa é uma questão fundamental de acessibilidade e respeito ao ser humano.

Decerto, há honrosas exceções. Muitas instituições públicas e privadas têm compreendido as demandas da população transgênero e, ainda que ausente uma regulamentação para tal demanda, permitido o acesso aos banheiros em consonância com o gênero com o qual as pessoas se identificam. É preciso, porém, que os cidadãos preocupados com o avanço da democracia no Brasil estejam ainda mais atentos a eventuais violações de direitos fundamentais, decorrentes de puro preconceito.

* JAQUELINE GOMES DE JESUS é psicóloga e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília (UnB).

** Com o tempo e o aprendizado vêm as adequações no vocabulário. Hoje não faz o menor sentido denominar as pessoas não-trans como "biológicas", até porque todos os seres humanos são biológicos. Atualmente, é comum e adequado o uso do termo "cisgênero" para se referir às pessoas que não são transgênero.

REFERÊNCIA:
JESUS, Jaqueline Gomes de. Banheiros para novos apartados? Consulex. Revista Jurídica, Brasília, v. 16, n. 375, p. 62-63, set. 2012.

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