quarta-feira, 17 de abril de 2013

REFAZENDA

Já muito se escreveu e se falou sobre essa música que ainda encanta como um mantra, literalmente. O poeta chegou a afirmar, para quem questionou uma vez se a canção era uma referência à ditadura militar (foi composta em 1975), que ela era apenas um jogo de palavras, sem nenhuma intenção de engajamento político subentendido. A riqueza e a amplitude da letra permite e estimula múltiplas interpretações; eis a minha humilde opinião:
O tempo é o senhor de tudo, que quase sempre nos passa despercebido, mas quando abrimos os olhos para seu moto contínuo, há os que se desesperam, e os que o degustam, como no mito afrobrasileiro da Orixá Nanã, que trabalha as coisas como se tivesse a eternidade pela frente. Não a temos, porém penso que há momentos em que nos faz muito bem agir como se tivéssemos.
Na casa da minha Vó Terezinha há grandes abacateiros, que hoje não frutificam com a constância da minha infância. Os abacates demoram a nascer, e na pressa de comê-los várias vezes minhas tias coletavam os frutos verdes para comer com sal, gostavam, comiam também manga verde, pelas mesmas razões.
O ato do abacateiro gerar abacates é demorado, e quem queira sentir o prazer de comer um delicioso abacate maduro (no qual minhas tias polvilhavam bastante açúcar cristal), deve ser paciente, o que não significa que não possa ter outros prazeres mais imediatos e fugidios, como os tomates e os mamões, que nascem em beira de estrada como os chuchus dos antigos ditados.
Isso lembra o amor, que pede um vagar para se consolidar, diferentemente das paixões. Os abacateiros nos ensinam a sermos carinhosos com o tempo, quem sabemos podemos ensiná-los a serem mais fogosos nos tempos em que tudo pode ser refeito, as fazendas e os fazeres? Nesse ponto somos como os abacateiros, isto é, quando nutrimos cuidadosa e carinhosamente um amor, dos tantos possíveis. Como os abacateiros, somos do mato porque, mesmo vivendo nas modernas cavernas de concreto ou mesmo de sapê ou pau-a-pique, somos vivos e da natureza somos parte, e ela somos, e dela dependemos para continuar vivendo.
A força do poema reside na admiração que podemos prestar mesmo às coisas que, aos nossos olhos, parecem mais simples, e que quase sempre não conseguem nos ouvir. No fundo, vamos nos refazendo como pessoas cada vez que vislumbramos o mundo e os que nele habitam, incluindo a nós.
*
REFAZENDA
Gilberto Gil
Abacateiro acataremos teu ato
Nós também somos do mato como o pato e o leão
Aguardaremos brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração
Abacateiro teu recolhimento é justamente
O significado da palavra temporão
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão
Abacateiro sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem o seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro doce manga venha ser também
Abacateiro serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário da leveza pelo ar
Abacateiro saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba
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~o~

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