Charles George Moore Wedderburn (Fonte: Carl Juste/Getty Images/6-4-2007).
Pichón, em espanhol, refere-se ao filhote de um passarinho.
Segue transcrição de matéria de O Globo sobre a biografia de Carlos Moore. Leia e assista outros detalhes clicando aqui.
Dissidente cubano que vive em Salvador há 17 anos, Carlos Moore tem biografia lançada no Brasil
Em ‘Pichón’, o cientista político descreve sua luta contra o racismo, em meio a lembranças da cena folk de Nova York nos anos 1960, críticas à repressão de Castro à cultura afro e elogios ao hip-hop.
RIO - O nome completo do autor é extenso — Charles George Moore Wedderburn — , assim como a história contada por ele em sua auto-biografia. Lançada no exterior em 2008, “Pichón” segue os passos errantes do renomado cientista político, escritor, ativista e dissidente cubano ao longo de mais de cinco décadas, numa odisseia por Cuba, Estados Unidos, onde estudou, França, Egito, Nigéria, Senegal, onde viveu exilado, e Brasil, onde mora (em Salvador) desde 1998.
De entusiasta a crítico do regime cubano, Carlos Moore, como é conhecido, descreve sua luta contra o racismo (motivo de sua ruptura com Fidel Castro), num texto que ora parece um thriller de espionagem — foi perseguido tanto pelo serviço secreto do seu país como pelo FBI — , ora parece uma drama histórico, descrevendo do movimento pelos direitos civis nos EUA à luta pela emancipação africana, ao lado de personagens como James Brown, Malcolm X. (de quem se tornou amigo e até mesmo segurança improvisado), Joan Baez, Miriam Makeba e Fela Kuti (de quem escreveu a biografia “Esta puta vida”). Com o subtítulo “Raça e a Revolução Cubana”, o livro ganha, finalmente, uma versão em português — que sai, nos próximos meses, pela editora Nandyala — com um capítulo inédito, que descreve o ponto final do exílio de Moore, o Brasil.
“Quando revejo o livro, como agora para essa edição brasileira, fico espantado, pensando, 'Meu Deus, isso tudo aconteceu mesmo comigo?'”, afirma Moore, 72 anos, em entrevista exclusiva ao GLOBO, em meio a lembranças da boêmia cena folk de Nova York nos anos 1960, críticas à repressão de Castro à cultura africana e elogios ao hip-hop produzido atualmente na ilha.
Como é esse capítulo extra do livro, no qual o senhor conta sua experiência no Brasil?
Nele relato minha experiência de vida no Brasil. Aqui pude testemunhar algumas importantes mudanças na sociedade. Uma das mais interessantes, no meu ponto de vista, envolve a discussão sobre racismo, algo aberto no governo de Fernando Henrique Cardoso e depois aprofundado com o governo Lula. Falo sobre como esse debate, que antes era fechado e limitado, teve reflexos na sua cultura, como no cinema e na televisão, por exemplo.
Como o senhor descreveria sua adolescência, parcialmente passada nos Estados Unidos, afinal, como mostra o livro, aos 18 anos já tinha uma voz ativa e era vigiado pelo FBI?
Uma adolescência atípica, sem dúvida, já que minha tomada de consciência foi atípica também. Era o começo dos anos 1960, a época do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, do feminismo, das lutas de emancipação na África, contra o colonialismo etc. Pude acompanhar também a cena folk de Nova York, de Bob Dylan, Joan Baez e Pete Seger, e o crescimento do rhythm and blues e do funk de Sam Cooke e James Brown. Eram, enfim, tempos de efervescência, que praticamente obrigavam as pessoas a refletir sobre o mundo em que viviam. E em meio a tudo isso, aconteceu a Revolução Cubana, da qual me tornei, inicialmente, um entusiasta, mesmo acompanhado tudo à distância.
Foi nos EUA que o senhor teve os primeiros contatos com Malcolm X, de quem se tornaria amigo pessoal e até mesmo um chefe de segurança improvisado, em Paris, alguns anos depois. Como ele era na intimidade?
Conheci Malcolm X quando tinha 17 anos, em Nova York. Ia nas palestras e encontros na mesquita que ele frequentava e ficava apaixonado pela eloquência e pela coerência do que ele dizia sobre a afirmação racial. Acabei voltando a Cuba, onde me desiludi com a forma como a revolução estava sendo conduzida. Em resumo, após ser preso, fugi de lá e acabei reencontrando Malcolm X, em Paris, onde eu vivi parte do meu asilo. Isso foi no final de 1964. Ele vinha de uma série de encontros na África e daria uma palestra na capital francesa. Tivemos muitas conversas, e ele sempre se mostrou muito sereno e calmo. Sabia que estava marcado para morrer, tinha perfeita noção disso. Uma noite, quando estava no quarto dele, de guarda, vi que antes de dormir ele tomou um comprimido com um copo d'água. Perguntei o que era aquilo e ele apenas sorriu. Mais tarde, descobri que era um tranquilizante. Ele estava sob uma tremenda pressão e precisava daquilo para dormir. Menos de dois meses depois, foi assassinado.
É possível fazer um balanço, hoje, do impacto da Revolução Cubana na cultura?
O primeiro efeito foi extraordinário, que foi dar confiança ao povo, fazê-lo acreditar em sua força, em seu poder. Ela criou espaços de vida que não existiam antes. Por outro lado, foi progressivamente destruindo outras formas de expressão que deveriam ser mantidas. Como boa parte da população branca de Cuba fugiu para o exterior, a população negra se tornou majoritária no país. E Fidel e seus aliados não estavam preparados para lidar com isso, um dos motivos pelos quais me desiludi com a revolução. A música afro-cubana, por exemplo, foi reprimida, caso do Buena Vista Social Club, assim como as danças da santeria, do candomblé, que foram consideradas improcedentes e improdutivas. Jazz, funk e rhythm and blues também foram banidos, classificados como "imperialistas". Dizia-se que o momento era de trabalhar, não de dançar e cantar. Assim, tudo isso foi para a clandestinidade. Mas como é uma cultura que, desde a escravidão, está acostumada com os subterrâneos, ela resistiu e ficou ainda mais criativa, mesmo com a repressão que se mantém até hoje.
O hip-hop cubano é um exemplo atual dessa resistência criativa?
Sem dúvida, o hip-hop recupera a tradição oral africana, que é dura de ser combatida. É uma das formas mais revolucionárias de expressão, não só em Cuba, mas em todo o mundo. Claro que uma parte foi absorvida pela indústria, mas sua essência permanece intacta.
Mas recentemente foi descoberto que os EUA financiaram parte da cena de hip-hop em Cuba, como um alegado esforço para promover a democracia na ilha. Isso tira a credibilidade desse movimento?
Não acredito. O hip-hop cubano já existia antes desse projeto, que, aliás, foi um grande erro dos EUA, que só serviu para dar mais pretexto para a repressão das autoridades a esses artistas. Por outro lado, espero que a anunciada e esperada reaproximação dos dois países possa quebrar essas e outras barreiras e preconceitos. Hoje, boa parte da juventude cubana é apolítica, o que é, de certa forma, uma reação ao estado das coisas ali.
No livro, o senhor relata que sua última viagem a Cuba foi em 2000. Pensa em voltar?
Não penso. Após um banimento de 30 anos, voltei em 2000 e descobri que me sentia encurralado, como se estivesse numa prisão a céu aberto. A questão cubana não me polariza mais. Hoje posso prescindir de Cuba, não sinto mais angústia por viver longe da ilha.
O senhor já pensou em transformar o livro em um filme?
Meu saudoso amigo Néstor Almendros, fantástico documentarista e diretor de fotografia, colaborador de Truffaut, chegou a ler vários capítulos do livro e comentou que seria um belo material para um filme. Mas nunca foi uma obsessão minha, embora não esteja fechado a isso.
E que trilha sonora gostaria de ver musicando esse filme?
James Brown e Fela Kuti, duas personalidades vulcânicas, refletem boa parte do que aconteceu na minha vida, essa constante falta de paz que seguiu meus passos. Eles são a trilha imaginária do livro.
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