quinta-feira, 29 de agosto de 2013

SERNEGRA - FEMINISMO NEGRO NA ENCRUZILHADA AFROBRASILEIRA: intersecionalidade, diálogos e horizontes

Seção Temática 01: Feminismo Negro na Encruzilhada Afrobrasileira: intersecionalidade, diálogos e horizontes, do SERNEGRA – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça no IFB.
Inscrições de propostas de comunicações orais ATÉ 13 DE SETEMBRO, em https://docs.google.com/a/etfbsb.edu.br/forms/d/1icwsNGIDgN7V6WbQXbB6sNg3HHqYTOZmpSp5z50s45U/viewform?edit_requested=true
Instruções para o preenchimento da proposta de comunicação oral em http://www.ifb.edu.br/attachments/5288_SERNEGRA%202013_Instrucoes_Inscricao.pdf
Coordenação da Seção Temática: Jaqueline Gomes de Jesus
Feminismo Negro designa um movimento político e intelectual no qual são repensadas as experiências e condições de vida de pessoas negras, a partir de uma perspectiva feminista. O feminismo negro identificou quando de seu surgimento, nos anos 70 do século XX, que ao não levar em conta a interseção entre raça e gênero, o feminismo tradicional não considerava as particularidades das mulheres negras, ou sequer as reconhecia como mulheres. O feminismo negro reavaliou as políticas feministas de um ponto de vista afrocentrado, defendendo dois pontos fundamentais para a crítica ao feminismo tradicional, mas também para o desenvolvimento de outros feminismos, ditos intersecionais: (1) a natureza simultaneamente operacional e interligada das opressões; e (2) a experiência de vida e o conhecimento acumulado pelas mulheres negras como elemento central para os debates e ações feministas. O presente Simpósio Temático tem por objetivo trazer à baila um debate sobre como o feminismo negro tem sido apropriado e re-elaborado como conceito e prática na realidade afrobrasileira. Serão acolhidos, entre outros, trabalhos que abordem a natureza operacional e interligada das opressões; a intersecionalidade de gênero, raça, orientação sexual, idade, origem, habilidades físicas e outras dimensões da diversidade; mulheres negras em movimentos feministas; gênero como conceito supremacista-desgenerização na Diáspora; quilombismo e feminismo: diálogos possíveis; experiência de vida e de lutas de mulheres negras; auto-representação de homens negros; e auto-definição, saúde, família, maternidade, liderança comunitária, política sexual na sociedade dominante e no contexto das relações interpessoais de mulheres negras.
Temas:
1 ) Natureza operacional e interligada das opressões;
2 ) Intersecionalidade de gênero, raça, orientação sexual, idade, origem, habilidades físicas e outras dimensões da diversidade;
3 ) Mulheres negras em movimentos feministas;
4 ) Gênero como conceito supremacista - desgenerização na Diáspora;
5 ) Quilombismo e feminismo: diálogos possíveis;
6 ) Experiência de vida e de lutas de mulheres negras;
7 ) Auto-representação de homens negros; e
8 ) Auto-definição, saúde, família, maternidade, liderança comunitária, política sexual na sociedade dominante e no contexto das relações interpessoais de mulheres negras.
Problemas:
1 ) Desconsideração das particularidades de mulheres negras no feminismo tradicional;
2 ) Invisibilidade dos conhecimentos e experiências das mulheres negras;
3 ) Crença essencialista no acesso privilegiado a conhecimento enraizado em experiências comuns que desconsidera a diversidade de ideologias e vivências de pessoas negras;
4 ) Segregação laboral de mulheres negras pela política econômica racista e sexista;
5 ) Estereotipização de gênero e sexualidade das mulheres negras;
6 ) Necessidade de solidariedade com os homens negros na luta contra o racismo e os estereótipos de gênero.
Metodologias:
Serão aceitos trabalhos teóricos ou resultados de pesquisas empíricas que versem sobre algum/ns dos temas citados, pautados por uma leitura afrocentrada, que eventualmente abordem os problemas mencionados.
Abordagens teóricas:
A presente discussão sobre feminismo negro poderá ser pautada pelos textos de diversas/os autoras/es, tais como:
BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. Estudos Feministas. 3, 2, 458-463, 1995.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. São Paulo: Geledés. Disponível em http://www.geledes.org.br/em-debate/sueli-carneiro/17473-sueli-carneiro-enegrecer-o-feminismo-a-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-uma-perspectiva-de-genero
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados. 17, 49, 117-133, 2003.
CHRISTIAN, Barbara. Diminishing returns: can black feminism(s) survive the academy?. In: Goldberg, David Theo (Org.). Multiculturalism: A critical reader. Cambridge: Basil Blackwell, 168-179, 1994.
COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment. Boston: UnwinHyman, 1990.
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto: O processo de construção da identidade racial de professoras negras. Belo Horizonte, Mazza, 1995.
KING, Deborah. Multiple jeopardy, multiple consciousness: the context of a black feminist ideology. Signs, 14, 1, 42-72, 1998.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Chegou a hora de darmos a luz a nós mesmas: situando-nos enquanto mulheres e negras. Cadernos CEDES, 19, 45, 7-23, 1998.
SPILLERS, Hortense. Mama´s baby, papa´s maybe: an american grammar book. Diacritics, 17, 2, 65-81, 1987.
O SERNEGRA ocorrerá de 18 a 20 de novembro, nos Campi Brasília e Taguatinga do Instituto Federal de Brasília - IFB. Confira a programação completa aqui: http://www.ifb.edu.br/attachments/4831_SERNEGRA%20-%20Cronograma-Divulgacao.pdf

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Leite para Novos S(ab)eres

"Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas"
(Vaca Profana, de Caetano Veloso).
*
Participei, como outros felizardos, em Natal, no Rio Grande do Norte, do Seminário Internacional Desfazendo Gênero: subjetividade, cidadania e transfeminismo, um grande encontro de pensadores arrojados, que circulam tanto na Academia quanto nas ruas do Brasil e do mundo, transformando as formas de lidar com o outro - ou pelo menos denunciando as prisões do padrão impostas aos viventes de gênero, dos gêneros, como Marie-Hélène Bourcier (saiba quem é clicando AQUI - em francês).
Como transfeminista com uma visão afrocentrada que sou, não posso deixar de fazer uma analogia entre essa reunião extraordinária e a encruzilhada, onde reina Exu, senhor da comunicação. Diferentes caminhos com a mesma direção ali, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cruzaram-se, para uma troca fascinante de ideias, saberes, sentimentos e toques.
Os organizadores do evento, em especial sua figura maior e guia, a inspiradora professora Berenice Bento (saiba quem é clicando AQUI) - amantíssima -, realizaram algo raro nos eventos científicos em geral: agregar não apenas especialistas de uma determinada área de conhecimento e seus admiradores, mas também pessoas apaixonadas pela temática da diversidade sexual e de gênero, dos estudos queer, transviados.
Nesse amálgama potencialmente inflamado, as reflexões foram ricamente apresentadas e discutidas, dentro e fora das salas, entre os seus debatedores oficiais nas mesas e aqueles corajosos que se alçavam das plateias para questionar ou problematizar. Intenso.
Entretanto, ao contrário de outros seminários e congressos internacionais nos quais os assuntos tratados se tornam de pesada digestão e os ouvintes tão-somente coadunam, submissos à titulação dos palestrantes, nesse as conversas se desdobravam de forma leve, até carinhosa. Sintoma da reunião de gente que honestamente reconhece o valor social - e porque não político - daquilo tudo que ouviam e falavam.
Ainda, como pesquisadora que se pauta por uma leitura psicológica e sócio-histórica da construção do real, não posso dizer que o sucesso do Desfazendo ocorreu por acaso, ou apenas em função do quilate dos nomes envolvidos ou do excelente trabalho da Comissão Organizadora. Não.
Olho para os seus movimentos e noto que eles decorrem de décadas de proposições, questionamentos, concordâncias e embates - em diferentes campos do pensamento e da ação - sobre tudo que ali era abordado por Djalma Thürler, Érika Kokay, Felipe Fernandes, Flávia Teixeira, Guilherme Silva de Almeida, Hailey Kaas, João W. Nery, Leandro Colling, Leilane Assunção, Luma Andrade, Patricia Porchat, Rafael de la Dehesa, Richard Miskolci, Roger Raupp Rios, Sandra Sposito, entre outros mais ou menos conhecidos, antigos e novos amigos: tensões e desejos acumulados que, neste agosto de 2013, eclodiram e foram elaborados eficazmente, num momento histórico e prazeroso para os estudos feministas e de gênero.
Valeu. Fertilidade de saberes e seres, propiciada por monstrinhos deliciosos e ousados, de modos próprios, para mim todos queridíssimos, como Hilan Bensusan, Leonardo Tenório, Letícia Lanz, Luísa Helena Stern e Viviane V., que circularam pelos corredores e calçadas da universidade falando de coisas que chocariam outras audiências - de cus, que produzem merda, que é o húmus da terra; do reinado autocrático dos pênis e das vaginas; das pessoas transgênero e cisgênero, até mesmo das "cisco", que se propunham a perturbar o olhar tenebroso da heteronormatividade e do sexismo. Dentre elas, a professora Larissa Pelúcio trouxe a público a defesa de estudos cu-
carachas - para mim perfeita transliteração, para o mundo latino-americano, dos estudos queer.
Seminário Internacional Desfazendo Gênero, vaca profana como a da canção de Caetano Veloso, nutriu tanto a nós, que nos refestelávamos naquele belo terreiro, quanto aos caretas - leite muito bom.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Hão de se Escrever Micro-Histórias dos Trabalhadores?

Há inúmeras análises teóricas e vários estudos empíricos sobre o mundo do trabalho; são publicadas pomposos livros sobre as sagas dos grandes empresários e líderes; são escritas histórias romantizadas sobre as organizações de trabalho, quase sempre nas efemérides; porém faltam ser conhecidas as micro-histórias dos trabalhadores.
O que constituiriam essas micro-histórias? O registro post factum dos momentos singulares de suas vidas nos locais de trabalho de uma organização, a identificação de oportunidades e obstáculos particulares que podem ser comuns a tantos outros trabalhadores. Sabemos como seres humanos que trabalho que tudo isso está lá, aqui.
As empresas podem ser diferentes, porém as dinâmicas e a organização de trabalho podem se assemelhar no que tange a representações sociais sobre o trabalho, sobre a história da instituição, sobre o que o trabalhar, sobre o que constituem as relações sociais no trabalho.
Aí alguns leitores mais críticos poderão se perguntar: o que psicólogos sociais ou antropólogos têm a ver com a história de um(a) anônimo(a) dentro de uma organização de trabalho qualquer? Para quê saber de suas andanças serve, para além de ser um mero registro sem valor histórico?
Tal raciocínio decorre da crença de que as pessoas, quando chegam para trabalhar, despem-se de suas identidades pessoais e sociais, assumindo uma persona que se dissolve na cultura organizacional - visão presente não apenas no senso comum, mas comum igualmente no discurso de muitos profissionais, dirigentes e mesmo de pesquisadores que limitam seu entendimento sobre a categoria trabalho a fatores organizacionais estanques no tempo presente, desvinculados dos processos culturais e históricos de sua formação.
As pessoas não deixam sua subjetividade, suas histórias de vida, seus anseios e sentimentos, sua cor de pele, gênero e orientação sexual do lado de fora do prédio. Eis um mantra que vem sendo repetido sem descanso por quem pesquisa e faz gestão da diversidade humana nas organizações.
Não. A Psicologia do Trabalho não se restringe à aplicação de surveys a amostras estatisticamente significativas de respondentes, é isso também, mas não apenas isso. Ela pode ser feito por meio do registro etnográfico, do estudo de caso, da análise do conteúdo e dos discursos, de dezenas de outros métodos. Para além da metodologia, o registro de episódios relevantes na trajetória de seres humanos em uma organização de trabalho poderia nos falar muito não só sobre esses trabalhadores, mas sobre essa organização e sobre as relações de trabalho nela produzidas e reproduzidas.
Ainda hei de contarei a estória de um/a trabalhador/a que seja, não como ficção ou biografia, e sim como estudo psicossocial.
Enquanto isso, milhares de histórias de trabalho se perdem a cada dia, sem qualquer registro, sem qualquer nota de rodapé.

domingo, 11 de agosto de 2013

Onde Está a História dos Indígenas?

Já estava o Brasil perdido antes de sequer ter esse nome quando foi descoberto por Vicente Pinzón. Porém, como o que interessava aos invasores era gravar na História oficial uma verdade que lhes favorecesse a posse, acertou-se que um português deveria ser o descobridor de algo; passou-se a coroa para Pedro Álvares Cabral, e a verdade verdadeira ficou sendo esta, conforme se repete nos livros escolares.
Esses livros são as fontes mais confiáveis para tudo que nos cerca, afinal, que país seríamos se ensinássemos mentiras aos nossos alunos (desculpe, não "mentiras", mas aquilo que nos interessa, como integrantes de uma coletividade privilegiada)?
Há uma lacuna em nossa representação social do que é ser brasileiro. Dela estão ausentes as versões dos povos autóctones acerca das invasões europeias, da ocupação genocida do território e das rebeliões indígenas. Enquanto não for preenchido esse vazio proposital, continuaremos reprisando histórias censuradas sobre nós.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A Passagem do Amigo

Eu vou relatar uma estória, como ela me foi contada no começo da minha juventude e nos limites da minha memória fraca apesar da pouca idade, pela minha tia Marilene, com a finalidade de retratar para mim, de forma didática, a índole da nossa família materna.
Meu finado avô Jonas, minha avó Terezinha e minhas tias e tios mais velhos ainda moravam em Santo Antônio do Itambé, interior de Minas Gerais, na região do Serro — em meados dos anos 60 eles se mudariam todos para Brasília, com a permissão do vô, onde nascera.
Nesse tempo, numa noite quando minha tia Marilene, então uma moça com visão plena (já vivendo na capital federal, ela perderia grande parte da visão devido a um problema de saúde pouco estudado), acompanhou de uma das janelas da casa humilde na qual morava com seus doze irmãos e irmãs — e que eu conheci uns quarenta anos depois do ocorrido que estou começando a recontar — a saída de seu “papai”, como todas minhas tias e tios se referiam a ele, e de um amigo dele, cujo nome ela deve ter me dito mas do qual não me lembro, para se divertirem numa vila vizinha.
Ela fez questão de ressaltar que, na época, a cidade não dispunha de rede de energia elétrica, e por isso se dependia da intensidade da luz da Lua — não me explicou se era Cheia, apenas que tornava razoavelmente visíveis os vultos — para se enxergar minimamente os caminhos dos homens à noite. Eles subiram a ladeira, que muitos anos depois receberia calçamento de paralelepípedos.
Hoje eu perguntaria à minha tia se minha avó chegou a fazer algum comentário sobre a noitada do meu avô, só para ter certeza. Porém era evidente para mim que naqueles idos do século XXI mulheres interioranas, casadas e com pencas de filhos não tinham liberdade e tampouco permissão para expressarem o que pensavam e sentiam acerca dos quereres e fazeres de seus maridos.
Continuando: ela na janela vendo meu avô e seu amigo sumindo nas sombras. Como não tinha mais nada para ver, pois a rua estava vazia, fechou a janela — de madeira como continua sendo — e foi se juntar aos demais no interior da casa.
Como é de conhecimento público, “tarde da noite” naquela época sem iluminação pública era razoavelmente depois do pôr-do-sol. As crianças já estavam dormindo, enquanto os demais, se não estavam deitados, passavam o tempo conversando baixinho no escuro ou varrendo o piso de terra batida perto do fogão de lenha, que ainda está lá.
A leitores contemporâneos, o retorno do pai deveria ser uma preocupação. Não era, não para aquela família, especialmente não no Itambé, um lugarejo perdido no meio do mundo, onde as pessoas se conheciam do nascimento ao enterro. E quando os homens saiam para se entreterem, sempre voltavam na manhã seguinte, não importando o seu estado.
Praticamente todos dormiam ou cochilavam quando minha tia Marilene desperta com batidas na janela. Despreocupada, vai atender, e ingênua como a maioria dos dali sequer pergunta quem é, abre, e se depara com o amigo do vó:
— Filha, avisa sua mãe que Seu Jonas vai chegar mais tarde. — solicitou, educadamente. — Eu não vou pra casa, se minha mulher perguntar por mim amanhã, diz que eu passei aqui e estou bem — afirmou, sem o menor tom de preocupação.
Ela não respondeu, certamente por causa do sono, porque sempre foi demasiadamente faladeira, apenas meneou a cabeça, indicando concordância e cerrou novamente a janela enquanto o amigo do seu pai ia embora sem dizer mais palavras. Minha impressão imatura, no tempo em que me foi contado isso, era que eles eram mal educados por não se despedirem. Com a minha cabeça de hoje eu acho que, como esse povo sempre se todos os dias, praticamente “dormindo juntos”, etiqueta não era algo necessário para as relações sociais.
Pois bem, ela estava tão sonolenta que esqueceu da incumbência junto à mãe e acompanhou a cidade inteira que dormitava. E nada mais aconteceria naquela noite, como era normal.
O Sol mal nasceu e o galo começou a cantar, despertando a todos: minha vó acende o fogo, com a ajuda das meninas. Meu avô ia chegar logo e a primeira coisa que iria querer seria café e queijo.
E ele chegou mesmo:
— Terezinha! — chama de fora, nunca levava chave, pois sempre tinha a mulher para lhe abrir a porta, e ela vai.
Ao encarar o Seu Jonas vê que está acompanhado de um homem estranho. E minha tia Marilene ouve a conversa:
— Mulher, o ------- morreu no bar!
“O quê?”, pensa minha tia, em consonância com a pergunta de minha avó, porém complementando em pensamento o que minha vó Terezinha não falou: “Mas como? Ele falou comigo ontem, eu já ia avisar mamãe... eu esqueci de avisar ela”! — e fica preocupada em sofrer alguma punição, por mais incoerente que isso pareça.
— A gente tinha chegado há um tanto, tava conversando e chegou uma inimizade dele, eles começaram a brigar só com palavra, aí o homem deu um tiro nele, matou o ------- na hora! — explicou Seu Jonas.
A casa inteira ficou transtornada com a notícia, especialmente minha tia Marilene. Meu avô prossegue:
— Esse senhor veio comigo de lá pra gente contar pra mulher do -------, amparar ela. O corpo ficou pra buscarmos mais tarde, não tinha mais quem ajudasse a trazer. Os homens saem e minha vó junto, antes ordenando aos filhos, como todos os severos pais de outrora:
— É pra vocês ficarem aqui em casa, não é pra vocês saírem!
As crianças e as moças obedeciam sem nem mesmo levantar os olhos, tinham introjetado o medo da vara que tanto doía.
Tia Marilene ficou o resto do dia remoendo consigo a conversa com o amigo do papai. Não contou a ninguém. E me disse que jamais falou com ninguém, antes de mim, sobre isso, nem mesmo à mulher do amigo. Sabia que iam chamá-la de mentirosa. E conclui afirmando:
— Eu falei com ele depois de morto, aqui a gente da casa da sua vó tem dessas coisas, mas a gente não conversa sobre elas.
Estava aí apresentada a moral da história, segundo minha tia. Fiquei me sentindo uma privilegiada confidente dela.
Sou psicóloga, e por mais que evite e desminta quem diga isso, faço muitas análises e releituras de minhas atitudes passadas, e as das pessoas que conheci e conheço ao longo da vida.
O que sei é que, na verdade, juntando os pedaços de tudo o que ouvi durante a infância e o início da adolescência, histórias sobre espíritos eram cotidianas na casa da minha vó, não aquelas sobre anônimos, mas acerca de pessoas próximas, até mesmo parentes, contadas pelas tias, até onde sei, pelo menos para mim:
“Quando algum de nós morre fica na casa durante uma semana, esbarrando nas coisas”.
“Quem morre às vezes nos fala das coisas enquanto dormimos”.
“Eu vejo os mortos assim que morrem” — essa é a minha tia Marilene.
No meio disso tudo, o ápice foi o ensinamento de minha vó Terezinha, que quando eu lhe confessava o meu medo do escuro (sem detalhar se temia fantasmas ou “bonequinhos escuros”, como minha Tia Marlizinha lamentavelmente me assustava, falando deles), replicou:
— A gente não deve ter medo dos mortos, e sim dos vivos.
Cresci apegada a tal orientação.
Agora é agosto, mês do folclore. É igualmente, o mês em que, coincidentemente, quase todas as minhas tias aniversariam, incluindo minha vó e minha falecida mãe.
Pessoas tão queridas, com suas loucuras e segredos partilhados aqui e ali, principalmente com as pessoas nas quais confiam, muitas vezes só pelo prazer de passar uma história à frente.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O Parto dos Carniceiros e Salvadores

A quantas anda a gestação dos novos fascismos neste país? Contemos:
Fundamentalismos religiosos estabelecidos nas esferas políticas; reações incoerentes das autoridades às manifestações de rua; propostas de remuneração ao denuncismo, ao invés de aprimoramento dos mecanismos de fiscalização da corrupção; impunidade estrutural; alheamento da intelligentzia brasileira às demandas cotidianas da sociedade; emissão massificada de títulos acadêmicos sem qualquer lastro de qualidade; perpetuação do domínio oligárquico e racista de todos os espaços de poder; fortalecimento da lógica presenteísta e de "qualidade total" nas organizações públicas de trabalho; perda do sentido de futuro das crianças e jovens, que se afogam no mar do consumismo e da violência glamourizada; ausência de pensamento crítico entre os comunicadores e formadores de opinião, que no seu estágio mais sensacionalista se tornam carniceiros do jornalismo marrom.
Alarmista, eu? Não. Estou apenas apontando para a possibilidade do surgimento de um novo Salvador da Pátria, o que pouquíssimas pessoas estão notando.
Faço à sua consciência uma pergunta retórica: pode um povo repetir erros, entusiasticamente?...