domingo, 28 de abril de 2013

Imagens de Negros, Negras Imagens* - uma reflexão

Na imagem acima, os atores Ruth de Souza e Sérgio Cardoso (que era branco, mas foi pintado na famigerada técnica blackface) em cena da novela A Cabana do Pai Tomás (Globo, 1970).
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IMAGENS DE NEGROS, NEGRAS IMAGENS - Uma reflexão
Jaqueline Gomes de Jesus
Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB e professora do Centro Universitário Planalto do Distrito Federal - UNIPLAN
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Cada cor de pele de um grupo social é traduzida por e em um conjunto imenso e variado de símbolos, dependendo da cultura, da história de vida e dos pontos-de-vista das pessoas circunscritas a essa ou aquela cultura: a imagem que se tem de diferentes matizes não pode ser interpretada, simploriamente (por naturalização), como a expressão de sensações primárias: imagens das coisas são construídas socialmente, as quais sofreram bruscas transformações ao longo da História da humanidade.
Apesar das expectativas, fotografias nem sempre guardam similaridade com aquilo ou quem representam, visto serem dependentes de fatores físicos determinados, tais como o tipo de filme empregado, grau de iluminação e qualidade da revelação; esse processo é controlado por pessoas, que em função dos fins almejados manipulam variáveis a partir da percepção que se têm delas, revelando as insuficiências das palavras para descrever a consciência social (Martins, 2008).
As pessoas são, normalmente, percebidas de forma diferente dos objetos, os quais, geralmente, não são percebidos como capazes de perceber. Nos contextos do misterioso, do religioso ou do sagrado podemos chegar a conclusões diversas dessa. Os seres humanos se percebem a partir de pressupostos psicológicos e sociais, mais do que "factuais", e esse processo psicossocial de percepção - como relatava Aroldo Rodrigues, no seu livro Psicologia Social (1996) - é determinado por fatores como os valores, atitudes, tendenciosidades cognitivas e estereótipos do perceptor face ao estímulo percebido.
Postulava, o fisiólogo russo Ivan Pavlov, que o preconceito seria uma forma de economia psíquica, por meio da qual as pessoas tentam facilitar seu entendimento do mundo por meio da adoção de imagens generalistas, e geralmente parciais ou falsas, acerca dos indivíduos e grupos. Tal concepção não tem sido contestada pelos psicólogos sociais, também não se têm proposto análises divergentes de seus fundamentos e repercussões. Com isso quero dizer, como constatação e não como crítica, que hoje temos isso como um princípio, a partir do qual se desenvolvem teorizações, pesquisas e intervenções no campo dos estereótipos, dos preconceitos e das discriminações (Pérez-Nebra & Jesus, 2011).
Afirmou Nietzche, em Além do Bem e do Mal, que "cada povo tem sua tartufice própria, que chama de suas virtudes. - o que se tem de melhor não se conhece - não se pode conhecer" (§ 249, p. 157, 1998). Dada essa perspectiva, não espanta o fato de os brasileiros serem cínicos no que concerne à questão do racismo, titulando-se como "democratas raciais", enquanto o preconceito e a discriminação contra a população negra transborda em todos os âmbitos da sociedade brasileira. O dito popular "só cego não vê" representa com propriedade a percepção do racismo pelo brasileiro médio: nega-se que ele exista, apesar dos indícios apontarem em uma direção diametralmente oposta à da negação.
As imagens das pessoas negras nas sociedades ocidentais pós-colonialistas foram construídas sobre estereótipos que variam, de sentimentos desagradáveis associados à "feiúra", ao grotesco, imagem que transparece desde os livros didáticos - o livro "Superando o Racismo na Escola", organizado por Kabengele Munanga, é repleto de exemplos -, passando pelos jornais e revistas e despontando nos populares programas televisivos.
A imagem psicológica negativa é reforçada pelo etnocentrismo na manipulação dos recursos audiovisuais: aos negros são aplicadas as mesmas técnicas de fotografia e filmagem comumente construídas para e dirigidas às pessoas de pele clara, sem qualquer adaptação às características de pessoas com peles com maior concentração de melanina, o que redunda em prejuízo visual para o representado, cuja figura não é reproduzida de maneira tecnicamente adequada.
O estereótipo, nessa conjuntura resultante de uma mescla de ignorância e preconceito tecnologicamente estruturados, é reforçado pela difusão inapropriada da imagem das/dos negras/os, ou melhor, de qualquer um(a) que tenha uma coloração de pele um pouco mais escura do que a estabelecida pela noção massificada de "beleza", portanto, afigura-se que, caso se pretenda transformar positivamente a imagem marginalizada que a cultura racista produziu, devem-se mudar não apenas os conceitos, mas também o modo como são abordados os instrumentos de criação/manipulação das imagens.
Não faltam alternativas para o aprimoramento da exposição das figuras negras nos meios de comunicação imagéticos - televisão, jornais e revistas. Faz-se mister discorrer com base na experiência e em entrevistas com pessoas envolvidas na manipulação da imagem humana: jornalistas, maquiadores, fotógrafos, inquirindo-as quanto ao diferencial da imagem do homem e da mulher negros.
A imagem que se tem das pessoas, mais do que ser tão-somente um registro do "real", é, por si só, uma ontologia: existe um arcabouço de pressupostos sobre os seres humanos, que desenham, na mente de quem percebe, não apenas nossas imagens, mas nós mesmas/os, sejamos nós quem/como formos, mas geralmente em prejuízo dos grupos historicamente excluídos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Martins, J. S. (2008). Sociologia da Fotografia e da Imagem. São Paulo: Contexto.
Munanga, K. (2001). Apresentação. Em Munanga, K. (Org). Superando o Racismo na Escola. Brasília: Ministério da Educação.
Nieztche, F. (1998). Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras.
Pérez-Nebra, A. R. & Jesus, J. G. (2011). Preconceito, Estereótipo e Discriminação. In C. V. Torres & E. R. Neiva (Orgs.), Psicologia Social: principais temas e vertentes, 217-237. Porto Alegre: ArtMed.
Rodrigues, A. (1996). Psicologia Social. Petrópolis: Vozes.
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* O título faz referência à histórica exposição "Negras Memórias, Memórias de Negros", realizada em 2003, em São Paulo, sob a curadoria de Emanoel Araújo. Clique aqui para saber mais sobre o artista e sua trajetória.
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