terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A Liberdade de CeCe McDonald

Imagem disponível AQUI.

A coragem e a luta de uma jovem falam muito sobre a força dos oprimidos e a necessidade de que a estrutura social de controle sobre os corpos, herança escravagista das Américas, seja desmantelada, na teoria e na prática.

Foto de CeCe McDonald encontrada em http://supportcece.wordpress.com

CeCe McDonald foi libertada ontem, 13 de janeiro de 2014, após um ano e sete meses detida em uma prisão dos Estados Unidos. CeCe foi presa por se defender de um ataque racista e transfóbico perpetrado por um grupo - CeCe é uma mulher negra transexual.

Estado de CeCe após o ataque. Arquivo Pessoal.

Janet Mock, escritora, jornalista, ativista trans e editora da revista People.com, redigiu uma bela carta a CeCe, na qual demonstra toda sua solidariedade e reconhece o sofrimento que esta passou, sem perder a dignidade e sempre reafirmando o direito à vida das pessoas trans, vergonhosamente negado a ela quando foi penalizada por se defender de um crime de ódio: Because of You: My Letter to CeCe McDonald on Her Release.


Visita a CeCe de Leslie Feinberg, escritora e ativista trans (foto extraída DAQUI).

Janet Mock, escritora, jornalista, ativista trans e editora da revista People.com, redigiu uma belíssima carta a CeCe, na qual demonstra toda sua solidariedade e reconhece o sofrimento que esta passou, sem perder a dignidade e sempre reafirmando o direito à vida das pessoas trans, vergonhosamente negado a ela quando foi penalizada por se defender de um crime de ódio.

Meu intento, nesta postagem, não é descrever - sequer sumariamente - tudo o que a jovem CeCe McDonald enfrentou. E tampouco pretendo reiterar a importância dessa mulher negra trans no debate sobre a injustiça a que a população negra e a população trans estão submetidas, a qual se potencializa quando essas dimensões discriminadas de cor/raça e gênero se encontram.

Este momento é conveniente para se estimular uma reflexão sobre os perversos mecanismos da transfobia, do sexismo e do racismo, expressos em práticas institucionais como o aprisionamento daqueles cujos corpos - negros e/ou trans - sobrevivem ao genocídio cotidiano, que no caso americano remete à realidade brasileira - porque ambos são herdeiros do colonialismo escravocrata nas Américas, com diferentes características sociais, tratamentos teóricos, práticas institucionais e políticas públicas, todas redundando, de uma forma ou de outra, em exclusão sistemática.

Desde que ser “negro” passou a ser sinônimo de “escravo”, com todas as conseqüências sócio-econômicas, delineou-se um processo de infra-humanização que, no contexto da exploração colonialista, era justificado e legitimado por meio de discursos e práticas sociais e institucionais de alienação e inferiorização das pessoas negras, que formatavam determinadas representações sociais sobre essa população.

Nesse sentido, as sociedades americanas, fundadas na dominação de povos por outros povos, utilizaram como estratégia a negação dos africanos como povos com culturas particulares e historicamente constituídas. As conseqüências dessa complexa conjuntura não poderiam ser facilmente superadas em um breve espaço de tempo, e menos ainda sem medidas adequadas: não bastaria, por exemplo, apenas acabar com a  legalidade da escravidão para que as pessoas negras não fossem mais marginalizadas.

O controle sobre os corpos é um dispositivo de poder e saber (remetendo ao pensamento de Foucault): particularmente as pessoas negras trans ainda não são vistas como seres plenamente humanos, mas como seres abjetos, porque não são inteligíveis para os padrões hegemônicos de identidade étnico-racial e de gênero (fundamentados no binarismo).

Esse é um dos aspectos políticos centrais da ação coletiva relacionada às pessoas trans: a luta pelo direito de poderem se nomear, de serem autônomas para falarem de si mesmas, de terem acesso a direitos civis básicos.

Um indicador significativo da invisibilidade das pessoas trans negras tem a ver com a perniciosa lógica de encarceramento, na qual predominam como prisioneiros homens negros. A luta histórica da professora, filósofa e militante negra Angela Davis, pela abolição no sistema prisional, não se restringe aos Estados Unidos, ela tem tudo a ver com a deteriorada realidade brasileira.

As travestis e as mulheres trans em conflito com a Lei que não conseguiram adequar seus registros civis a suas identidades sociais são alocadas nos presídios masculinos - o que CeCe McDonald vivenciou é algo cotidiano para muitas pessoas trans neste país. A negação sexista - e cissexista (clique AQUI para saber o que o termo significa) - da identidade dessas mulheres é reconhecida, nestas paragens, como um dever do Estado, partindo-se do entendimento falacioso de que a identidade de gênero dos seres humanos é determinada pela genitália.

Isso ocorre de tal modo que foram criadas alas específicas para separá-las dos homens, pois na prática eram violentadas diariamente. Essas alas, para a curiosidade dos mais atentos, costumam ser chamadas de Alas Gays, apesar de não haverem apenas gays ali.

Imagem extraída de vídeo da matéria "Ala especial em presídio da PB ajuda travestis a não sofrer preconceito", da Globo News, acessível AQUI.

A maioria das pessoas trans trans em prisões, como na foto, são evidentemente negras.

Vale comentar que o Brasil é responsável, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas trans registrados no mundo entre 2008 e 2011, e no mesmo período por 50,5% desses crimes na América Latina, conforme dados da pesquisa "Transrespect versus Transphobia Worldwide" (TvT), conduzida pela ONG TransGender Europe – TGEU. Vivemos no país onde mais se matam pessoas trans no mundo.

Uma cena, gravada em 15 de abril de 2011, é significativa do caráter de ódio que orienta a transfobia no Brasil: o assassinato brutal, ocorrido em Campina Grande, na Paraíba, da travesti Idete (o seu nome social foi pouco divulgado na mídia, ao contrário do civil, além do tratamento em termos masculinos), morta com mais de 30 facadas por um grupo de 3 jovens (assista AQUI - atenção: cenas fortes).

Apesar dessa realidade cruenta, não há informações de como órgãos públicos brasileiros têm-se articulado para auxiliar especificamente as pessoas trans, muito menos aquelas que são negras, sem confundir suas demandas com as de outros grupos sociais, sem misturar as estatísticas das violações que elas sofrem com as de outras populações.

Um honrosa exceção é a atuação da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual vinculada ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, que promoveu ações publicitárias com pessoas trans e promove o Projeto Damas, voltado à inclusão sócio-profissional. Outra iniciativa inédita que pode ser citada foi uma recente audiência pública, junto à Organização dos Estados Americanos, para se avaliar a situação precária de reconhecimento dos direitos humanos da população transgênero no Brasil.

Apesar da inação generalizada do Estado e da pouca mobilização de organizações sociais pela cidadania das pessoas trans negras, noto que as principais ações surgem da própria sociedade civil, por meio de diferentes ativistas e acadêmicos que têm investigado e apontado para as mazelas que esse segmento significativo da população transgênero sofre.

Ainda estamos no nível dos discursos isolados sobre o tema, mas ele é o estágio fundamental para que essa massa de pessoas negras segregadas pelo silenciamento e pela exclusão comece a exigir que suas vozes sejam ouvidas, que sua realidade não seja lembrada apenas como parêntesis, que a diversidade de interseções nas identidades étnico-raciais e de gênero seja reconhecida - e valorizada.

Ademais, pensar sobre como as discriminações interagem perversamente e se potencializam para além de uma mera soma 1 + 1 é imprescindível, a fim de que não nos tornemos alienadas(os) ante a segregações que ocorrem diuturnamente e não consegui(re)mos explicar, se tivermos o olhar cego para o racismo, o sexismo e a transfobia.

O mesmo raciocínio vale para o classismo, neste país onde o acesso de moradores de rua ou dos de periferia a determinados espaços públicos e privados é desestimulado ou impedido, até judicialmente, como ocorreu no recente episódio dos "rolezinhos" em São Paulo.

Essa, em particular, não é uma questão que se restringe a vandalismo, como alguns enganosamente defendem, é uma questão de apartação social, de apartheid relacionado à incapacidade de conviver com os diferentes, no caso os jovens "economicamente diferentes", digamos assim.

Esse debate precisa ser aprofundado, para além dos argumentos medíocres de defesa da ordem e em prol da repressão, os quais têm sido propalados com incrível facilidade.

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