quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Sobre Ivana de A Força do Querer

Eu me senti aliviada quando a epifania* de Ivan(a) - personagem da novela A Força do Querer, enfim ocorreu: "É isso que eu sou, um homem trans!", eis o discurso com o qual o Ivan(a) se reconheceu.

* Epifania é um termo técnico para o momento em que a pessoa trans se toca da sua identidade de gênero.

Ver e ouvir Elis Miranda e Ivan(a) me deixa mais orgulhosa de ser uma mulher trans - e olha que eu já amo ser uma mulher trans!

Tudo bem que a situação utilizada para explicitar a condição não ocorre na vida "real", isso é o de menos, pois a cena foi extremamente didática - tanto para o personagem quanto, principalmente, para os espectadores leigos. Perfeita linguagem ficcional para quem não tem o mínimo de reflexão sobre gênero, para além do senso comum.

Apesar de falhas conceituais aqui e ali, considero que a novela, como complexa produção audiovisual, escrita e produzida por dezenas de pessoas, tem sido, de forma geral, bastante positiva para a visibilidade trans.

E saibam: eu não escrevo aqui babando a Rede Globo. Não preciso nem quero isso. Apenas acho necessário reconhecer o belo e importante trabalho que tem sido feito (ao contrário das outras emissoras, que nada ou mal têm feito).

A ficção é um campo em que as discussões sobre a população trans são raras, muita informação é produzida em forma de postagens, artigos, ensaios, artigos científicos e até livros, porém muito pouco no formato de filmes, peças, novelas, etc.

Essa área é estratégica para o reconhecimento da humanidade das pessoas trans - algo ainda em construção no Brasil.

Para superar os medos e preconceitos não basta apenas informar, é preciso gerar empatia, por meio do afeto, daquela dimensão que as artes, com o seu saber-fazer, potencializam, para além do verbal, por meio das palavras mas tocando os corações, não só as mentes.

Um dos mais poderosos caminhos para a superação do medo do que não conhecemos - termo técnico: hostilidade autística - é a proximidade, a convivência. Ela não resolve tudo por si só, entretanto torna mais familiar o que antes era estranho ou até mesmo inimaginável.

A presença qualificada de personagens como Ivan(a) e Elis Miranda, com suas possibilidades e limitações, na cena televisiva, aproxima milhares de pessoas cis - que não são trans - das pessoas trans. Isso também é uma forma de convivência, e faz toda a diferença no mundo das relações pessoais.

Recebo com bastante entusiasmo e esperança as repercussões da novela.

Parabenizo Glória Perez e toda a equipe que trabalha para dar coesão a essa obra coletiva, ao mesmo tempo em que insisto para que os movimentos trans - tanto o organizado quanto os autônomos - aproveitem ao máximo este momento, para exigirem do Estado políticas públicas em prol da cidadanização de nossa população: inclusão educacional e no mundo do trabalho formal, formação de mais pessoas trans em toda a cadeia produtiva da Economia Criativa (não só como atrizes e atores, mas também como roteiristas, diretores, cenógrafos, figurinistas, etc), entre outras iniciativas que já estão pautadas.

E se o Estado não responder, em toda a sua irresponsabilidade e transfobia estrutural, que haja auto-organização, para que, um dia, tenhamos de fato uma comunidade trans aqui no Brasil, ligada pelo compartilhamento de representações em comum e, principalmente, pelo afeto.


Ivan(a), representado pela atriz Carol Duarte.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Torre Negra

Quadro "Childe Roland to the Dark Tower Came", pintado por Thomas Moran em 1859.

"O jovem cavaleiro Roland à torre negra [sombria, literalmente] chegou,
Dizendo 'Fi, fu e fão,
Cheiro sangue de Inglês'".
Rei Lear (Ato 3, Cena 4), de Shakespeare (1608).

"Lá estavam eles, andando pelos lados da colina, encontrando-se
Para ver o último de mim, um quadro vivo
Para mais um cenário! Em uma folha de fogo
Eu os vi e conhecia a todos. E ainda
Intrigado o calcanhar aos meus lábios trouxe,
E sussurrei: O jovem cavaleiro Roland à torre negra [Idem] chegou'".
Childe Roland to the Dark Tower Came, de Robert Browning (1858).