Jaqueline Gomes de Jesus
O meu corpo não é objeto,
sou revolução
(Éle Semog, 1998, p. 57).
Escrever. Essa é uma experiência recente, em termos históricos, para o coletivo da população trans que vivencia a transfobia estrutural da sociedade brasileira. Obviamente que muitas pessoas trans sempre escreveram, porém eram muito exíguas em número, dado que uma das características da transfobia brasileira é a exclusão do povo trans do ambiente escolar, da educação formal, mesmo após esse direito ter sido garantido pela Constituição Federal desde 1988.
Apesar desta violência institucional, essa mesma população trans, estigmatizada e vilipendiada de seus direitos fundamentais, ao longo dos séculos construiu uma cultura rica e elaborada sobre si e sobre o corpo. Apesar de toda violência psicológica e física, representada significativamente pela repressão e perseguição policial, ou dos falsamente chamados de “justiceiros”, ela criou uma linguagem própria, afro-centrada, aliás, o Pajubá (ou Bajubá, como falam em algumas regiões do país), principalmente do banto ouvido nos terreiros de candomblé que as receberam.
Ante à negativa do domínio da linguagem escrita, ou da sua exposição no mainstream do mercado publicitário da literatura, foi desenvolvida toda uma oralitura pelo povo trans.
Como lhes foi recusada a inclusão plena na sociedade brasileira, a formação de uma identidade social trans não se deu no mundo do trabalho formal, não se deu em escolas, ela se deu por meio da cultura que as mais antigas travestis começaram a pensar, desenhar e performar nas casas de prostituição, nas ruas, e chegando, em alguns momentos, às casas de espetáculo, às boates, aos teatros, até. Pelos shows de transformismo (posteriormente anglicizados como apresentações de drag queens), bailes e espetáculos de travestis do século XIX, presença cativa nos carnavais e isolada no resto do ano, que teve seu auge nos anos 60 do século XX, com divas como Brigitte de Búzios, Camille K, Cláudia Celeste, Divina Aloma, Divina Valéria, Eloína dos Leopardos, Fujika de Halliday, Jane Di Castro, Marquesa, Rogéria e outras, chegando às elaboradíssimas performances multimídias de uma artista como Cláudia Wonder. Fontes primeiras de formas de expressão de si que incluem, mas vão muito além, do corrente sucesso nacional e global das cantoras drag dissidentes de gênero, que não são necessariamente trans, como Aretuza Lovi, Glória Groove, Kaya Conky, Lia Clark e, destacadamente, Pablo Vittar.
E não são só elas. Outras cantoras e grupos como As Bahias e a Cozinha Mineira, Liniker, Linn da Quebrada, Jup do Bairro, Pepita (a qual lançou um livro no qual reúne os ótimos conselhos que oferece a seguidores do seu canal no instagram), Mc Xuxu e outros têm se destacado aquém do transformismo, e reelaborado identidades trans e libertações dos estereótipos de gênero. Tudo isso é Brasil. As pessoas trans também são Brasil.
Nada disso foi concessão, mas conquista histórica de geração após geração da população trans, no caminho para a construção de uma comunidade.
Lamentalvemente rotulada como simplesmente “entretenimento”, a cultura trans tem sido alvo de ridicularização, senão de escárnio, porém, concomitantemente, foi por muito tempo apropriada por outros e invisibilizada de sua dimensão especialmente integrada à consolidação de um grupo constituído pela identidade de gênero daqueles que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando nasceram. Foi por meio de sua cultura que as pessoas trans conseguiram formar laços e sobreviver ante a toda forma de matança que vêm sofrendo.
Alguém ainda há de estudar mais aprofundadamente as velhas revistas pornôs como uma brecha para a expressão das individualidades das travestis e mulheres trans, entre toda a objetificação do seu corpo.
Mesmo aquelas pessoas sobreviventes que escrevem, identificadas enquanto travestis, mulheres trans ou homens trans, continuam não sendo reconhecidas, não sendo lidas adequadamente, não sendo citadas devidamente. Causa muito impacto às mentalidades centradas na cisgeneridade, enquanto padrão de humanidade, observar a produção de conhecimento da população trans: de fato valorizar o que pensamos e escrevemos, sem nos exotificar, é um desafio que se tem apontado cada vez mais.
Como eu escrevi brevemente em “Nascimentos em Livro” (prefácio de “Vidas Trans”, que relata parte da vida e lutas dos meus amigos Amara Moira, Márcia Rocha, Tarso Brant e João W. Nery), tendo bastante em conta a minha própria experiência, como pensadora, professora, acadêmica, intelectual-ativista, como costumo me referenciar (indico aqui a leitura do capítulo sobre transfeminismo, escrito por Helena Vieira e Bia Pagliarini Bagagli, para o livro “Explosão Feminista”, a fim de conhecer mais detalhadamente essa forma de me identificar):
“Mas quem ouve a pessoa trans? – Age-se como se não falássemos. Quem a lê? – Age-se como se não escrevêssemos... É contumaz que terceiros (geralmente cis) falem por nós, iniquamente, sem considerar nossos pontos-de-vista, nossa visão de mundo, nosso protagonismo em todas as suas expressões” (Jesus, 2017, p. 7).
Temos também uma tradição na Literatura, especialmente no que se refere às biografias. O livro “Viagem Solitária”, do saudoso João W. Nery, foi o maior exemplar dela, com impactos na cultura geral, com destaque para a teledramaturgia (a novela “A Força do Querer”); antecedido por autores como Anderson Herzer, o Bigode: “A Queda para o Alto”; Ruddy Pinho e suas várias obras premiadas, como “Nem Tão Bela, Nem Tão Louca”; e Fernanda Farias de Albuquerque, cujo depoimento foi recolhido pelo homem cis Maurizio Jannelli, das Brigadas Vermelhas italianas, no livro “A Princesa”. Mais recentemente, com a assunção dos bloggers, vloggers, youtubers e outros comunicadores que se utilizam dos recursos da internet, tivemos a publicação de livros nessa linha, como o “Meu Nome é Amanda”.
A nova frente é a de antologias de autores trans, da qual este valoroso livro da Academia Transliterária participa! É uma alternativa para enfrentarmos os problemas de distribuição para as nossas publicações: organizarmos elas coletivamente. Destaco aqui a coletânea “Nós Trans”, da qual participo, e “Antologia Trans”, entre outras.
Nessa longa – tantas vezes incógnita – trajetória, o saber-fazer da população trans tem ocupado novos lugares, falado de si para além dos guetos, escrito também, e potentemente publicado, superando a exotificação, como aqui, para o nosso empoderamento, e também para a humanização das pessoas cis.
Referências Bibliográficas
Albuquerque, F. F. & Jannelli, M. (1995). A Princesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Cursinho Popular Transformação. (2017). Antologia Trans: 30 poetas trans, travestis e não-binários. São Paulo: Invisíveis Produções.
Guimarães, A. (2016). Meu Nome é Amanda. Rio de Janeiro: Fábrica231.
Grupo Transcritas Coletivas. (2017). Nós Trans: escrevivências de resistência. Belo Horizonte: Litera Trans.
Herzer, A. B. (1982). A Queda para o Alto. Petrópolis: Vozes.
Jesus, J. G. (2017). Nascimentos em Livro. Em: A. Moira, J. W. Nery, M. Rocha & T. Brant (Orgs.), Vidas Trans (pp. 7-8). Bauru, SP: Astral Cultural.
Moreira, L. I. (2018). Vozes Transcendentes: os novos gêneros na música brasileira. São Paulo: Hoo.
Nery, J. W. (2011). Viagem Solitária: memórias de um transexual trinta anos depois. São Paulo: Leya.
Pepita, M. (2019). Cartas pra Pepita. São Paulo: Monocó Literatura LGBTQ+.
Pinho, R. (2008). Nem Tão Bela, Nem Tão Louca. Rio de Janeiro: Nova Razão Cultural.
Semog, E. (1998). Dançando negro. Em: E. Ribeiro & M. Barbosa (Orgs.), Cadernos negros: melhores poemas (p. 57). São Paulo: Quilombhoje Literatura.
Vieira, H. & Bagagli, B. P. (2018). Transfeminismo. Em: H. B. Hollanda (Org.), Explosão Feminista: arte,cultura, política e universidade (pp. 343-378).São Paulo: Companhia das Letras.
Wonder, C. (2008). Olhares de Cláudia Wonder: crônicas e outras histórias. São Paulo: Edições GLS.
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