segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Biologia: Inimiga do Feminismo?

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Abaixo transcrevo uma discussão muitíssimo interessante e instrutiva sobre os usos que se têm feito da Biologia e suas relações com o Feminismo, que aconteceu entre as participantes da lista das Blogueiras Feministas.
Não identificarei os nomes das colegas, o conteúdo é suficiente:
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Gente queria fazer um desabafo com vcs.
Eu, enquanto ecóloga e estudiosa das ciências biológicas, estou de saco cheio de gente vir e criticar a biologia pq "leu na Super Interessante que cientista X falou que substância ou comportamento Y corrobora um comportamento machista"
Primeiro: Super Interessante, Galileu, Folha, Estadão e qqr veículo de mídia não são periódicos de divulgação científica, então muitos deles vão sim cagar em pesquisas científicas pra manter o status quo. Segundo: eu não posso cagar uma área científica inteira pq eu li essas reportagens. Eu acho isso injusto pacas. As pessoas não fazem a mesma coisa com o feminismo e vcs não ficam com raiva? Então a sensação é similar.
Não estou aqui querendo defender que a Biologia enquanto ciência não tenha um discurso machista e opressor não só com as mulheres cis, mas também com as ID´s trans*. Eu estou querendo dizer pra vocês que condenar a área da Biologia INTEIRA por causa disso é injusto. Reduzir a área de estudo da Biologia apenas à estudos comportamentais é perigoso. Porque um botânico tem q ser castigado pq um biólogo que estuda comportamento humanos fala merda machista?
Existem biólogas feministas que fazem estudos bacanas que desmitificam conceitos machistas e temo que nós acabamos por não ter contato com esses estudos por causa de um preconceito com a Biologia fomentado por uma má divulgação da ciência.
Bem, acho q é isso...=P
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Concordo totalmente contigo, @@@@@@.
A galera que sai xingando a biologia se apega aos pseudo-estudos que ficam saindo por revistas como as que você já citou ou em veículos de notícias, porque só se escolhe esse tipo de porcaria. São "pesquisas" com amostragem altamente problemática, com métodos problemáticos, com análise problemática, etc. O pessoal ganha dinheiro pra pesquisar esse monte de porcaria só pra se manter ganhando o dinheiro.
Acontece o mesmo com a Psicologia e Psiquiatria. Vejo muita gente xingando, revoltadíssima, mas honestamente me parece mesmo é revolta adolescente que nunca passou. Desmerecer todas essas áreas e todos os grandes avanços conquistados por elas é estúpido demais.
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Ai ªªªªª muito amor! <3
Meu desabafo veio justamente por causa de uma discussão num grupo feminista onde teve uma menina q dizia não acreditar na ciência pq a Pfizer fez um bocado de coisa ruim,matou criancinhas na África pra testar um remédio e que todos os cientistas são cruéis e inescrupulosos q só pensam em dinheiro. O QUE DIABOS EU CIENTISTA DA ECOLOGIA TENHO A VER COM A PFIZER? Por um acaso pra ser cientista tem q fazer voto de pobreza?
Se tem pessoas q utilizam a ciência pra buscar lucro eu vou dizer que a culpa é única e exclusivamente da ciência e não que vivemos numa sociedade capitalista que incentiva a busca de lucro a qqr custo?
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@@@@@@, como você deve saber,
o que tem também de antropólogo, linguista fazendo merda com as comunidades indígenas, por exemplo, não é pouco não.
Qualquer área de produção de conhecimento pode colaborar na manutenção dos preconceitos, das desigualdades, como pode criticar e combater isso.
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E tem também cientista social. Minha irmã é desta área e, segundo ela, não se pode acusar, por exemplo, os indígenas de machistas sem estudar detalhadamente seus comportamentos, pois suas atitudes estão relacionadas à sua cultura.
Complicado...
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Concordo com tudo, então me perdoe por não adicionar nada muito relevante ao tópico.
Mas por que "IDs trans" e não "pessoas trans"? Eu não me identifico como trans, eu me identifico como homem. O que me coloca numa posição de opressão é o fato de eu ser transexual, não alguma "identidade". Ninguém diz "preconceito contra identidade negra" ou "preconceito contra identidade cis feminina" ou "preconceito contra identidade com deficiência física". Ninguém tá nem aí pra identidade. Eu poderia me identificar como o sucessor do reino de deus e isso não seria o suficiente pra me tornar uma classe oprimida.
Só um desabafo...
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Obrigada pelo desabafo %%%%%! Sempre aprendo demais contigo!
Na verdade quando estava escrevendo meu desabafo fiquei nessa dúvida se usava ID´s trans* ou pessoas trans*. Agora a minha dúvida está sanada!
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Um dia desses li um artigo muito legal, falando do impacto do feminismo nas ciências exatas, e falando mais especificamente da influência do feminismo nos estudos sobre reprodução humana. Muito interessante! O entendimento mais conservador, digamos assim, colocava o espermatozoide como ativo e o óvulo como passivo no processo da fecundação. E as cientistas feministas, ao desmistificarem essa dicotomia, abriram espaço para mostrar o quanto o óvulo atua no momento da fecundação; ele não fica lá, esperando o espermatozoide 'penetrá-lo'. Bom, não sou bióloga, perdoem se explico a coisa meio toscamente rsrs
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É, ******* ********... Essas histórias de fecundação, de órgão copulador, de o sptz ser o que penetra no óvulo enquanto esse só espera, de menstruação, de o macho ser o que faz de tudo para impressionar a fêmea, de macho que briga com outro para provar sua maior força para atrair e possuir a fêmea, de macho-alfa, de líder do bando...
Essas coisas me deixam muito frustrada na aulas de Biologia, mexem por demais comigo... Às vezes parece que essas coisas devem ser compreendidas como algo natural (e na verdade é!), não preconceituoso.. Parece que a natureza 'fez o homem para ser ativo' e 'mulher para ser passiva'...
Mas sempre tento tirar essas coisas da minha cabeça... E lembro que sempre há um cavalo-marinho para salvar a história. rss
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Olha, uma coisa que aprendi com um professor que meu aulas de evolução é que nós, seres humanos, temos a péssima mania de "antropoformizar" tudo, ou seja, ver um comportamento na natureza ou uma ação de um animal e pensar: orangotano faz aquilo pra impressionar a fêmea pq é macho, o furão pensou que era mais bacana ir praquele lugar q tem comida pq ele é esperto, e por aí vai...A gente enxerga os comportamentos dos animais com os nossos olhos e lhes atribuímos, como eu posso dizer, uma "motivação humana", pq se eu estivesse no lugar do animal eu faria do modo X. Não sei se consegui me fazer clara....
Só que a natureza não funciona dentro de uma lógica humana, nós é que inserimos nossa lógica nela pra poder entendê-la melhor. O fato dos antílopes machos brigarem pra ficarem com um harém de fêmeas não significa que eles são "ativos" e as fêmeas "passivas", longe disso. Essa é a leitura que nós, seres humanos, fazemos, pq na nossa espécie um cara brigar com outro pra ficar com uma mulher é considerado um cara "ativo".
E claro, toda essa lógica que atribuímos à natureza para melhor entendê-la é impregnado de uma visão machista, pq a ciência não é algo separado da sociedade. Ela é feita por pessoas e essas pessoas possuem os mais diversos valores, incluso aí valores machistas.
Outra questão: a biologia, assim como os diversos ramos da ciência, por vários séculos foi dominada por homens. As mulheres estão chegando agora e já começamos a ver, ainda que timidamente, alguns conceitos revistos devido a um outro olhar. O estudo que a ******* citou é um exemplo disso
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Bom, toda ciência séria tem crítica do método, das ferramentas e define muito bem o limite das conclusões que tira. Se esta informação não estiver junto com os resultados, eu pessoalmente não considero um trabalho científico sério. Isso vale para tudo: ciências sociais, humanas, exatas, etc. Então é preciso sempre fazer a descrição e a crítica do método.
Ainda assim, a subjetividade do/a cientista sempre vai interferir. Esse exemplo da antropormorfização e da aplicação de conceitos machistas é ótimo. Nas ciências humanas, vários teóricos da epistemologia falam em "reflexividade", que seria refletir sobre sua própria subjetividade e explicitá-la para que seja possível separá-la do que é objetivo e pode ser concluído a partir dos dados empíricos (articulados com a teoria). Não sei se tem algo assim nas exatas e biológicas, mas se não me falha a memória, as feministas/cientistas destas áreas trazem justamente este tipo de questão e tal. Não sei em que medida isso tem sido de fato apropriado e incorporado por diferentes áreas. Nas ciências humanas a tal reflexividade é ignorada pela maioria das pessoas, pelo menos no Brasil, o que resulta em muitos trabalho mal explicados, conclusões falaciosas, etc. Então a ideia até existe, mas quem é que coloca ela em prática?
Vou viajar aqui e dizer ainda que, vejam, o esquema simbólico sempre vai fazer diferença na ciência. A gente vê o mundo por meio do esquema simbólico. Sendo o gênero uma categoria do simbólico, vemos "macho" e "fêmea" em tudo. Assim: binários, excludentes, etc. como está formatadinho lá. Então outras noções muito arraigadas, específicas do nosso simbólico, também dão forma à nossa ciência: a ideia de indivíduo, por exemplo; ou a ideia de tempo linear (que a antropóloga Strathern lindamente mostra que são específicas do nosso modo de pensar, num livro amazing chamado After Nature - citei ele num post nas Bf, chamado "feto não é bebê, grávida não é mãe").
No fim das contas, todas as ciências são humanas, não importa o nome, né.
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