quinta-feira, 5 de abril de 2012

A Negação do Corpo Feminino

Life in plastic, performance de Sussa Rodrigues.
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Abaixo segue transcrição do artigo A Negação do Corpo Feminino, de minha autoria, publicado no dossiê Narrativas em Redes Sociais, edição 02/2012 do Observatório Mídia & Política, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política, entidade ligada ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (leia a publicação no Observatório aqui).
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A NEGAÇÃO DO CORPO FEMININO
Jaqueline Gomes de Jesus*
O mundo virtual gera espaços para a pluralidade de vozes e imagens de e sobre mulheres, todas as mulheres.
Os meios midiáticos, como processos comunicacionais baseados em práticas e discursos sociais, produzem subjetividades a partir da difusão de signos de toda espécie, gerando comportamentos, fortalecendo ou enfraquecendo ideologias. No campo das discussões sobre gênero, enquadram-se nas tecnologias do gênero mencionadas por Lauretis (1994), que produzem, promovem e implantam representações sobre masculinidades e feminilidades. O corpo feminino é mercantilizado, especialmente em propagandas, mas não somente nelas, por meio da divulgação de determinadas imagens, em contextos nos quais é tratado como produto, ou como um bônus, para o possível consumidor, na aquisição de um produto relacionado àquelas imagens.
Não qualquer corpo, mas alguns corpos. Quais? Quem assiste ou lê qualquer mídia audiovisual ou impressa e está minimamente atento(a) sabe que, geralmente, há corpos privilegiados: brancos ou pálidos, magros ou esquálidos, até mesmo voluptuosos. Nenhum meio-termo. São corpos marcados como “melhores” (em 2010, a norte-americana Fitness Magazine conferiu à filha do roqueiro Ozzy Osbourne o título de “Melhor Corpo de 2010”, ela tinha perdido 20 quilos para participar de um reality show), ou até mesmo, popularmente, como corpos de “mulheres de verdade”, na tradição das Amélias.
São corpos inatingíveis à maioria das mulheres, cujos perfis anatômicos, étnicos ou mesmo preferências estéticas não coincidem com eles. Modelos excludentes cuja afir-mação pelos meios de comunicação carrega preconceitos acerca da diversidade do que é ser feminina, fundados em julgamentos morais para escarnecer, admoestar ou negar outros corpos.
Entre as manchetes de revistas que prometem emagrecimento imediato por meio de dietas mirabolantes ou de tratamentos cirúrgicos, propagandeados como se qualquer cirurgia fosse um procedimento sem riscos, pululam exemplos edificantes de personalidades com mais de 40 anos de idade, porém com corpinho de 20, ou que, em pouco tempo, emagreceram muito. Prepondera o frágil argumento de que esses corpos são saudáveis, entretanto, tais mensagens podem ser benéficas para as jovens e adultas que compõem o público-alvo das publicações?
Mais do que apenas um culto ao corpo, essa é uma tentativa de negar a possibilidade do corpo feminino se expressar em diferentes moldes.
Feias, sujas e malvadas
Os comerciais de cerveja são conhecidos pela associação de elementos machistas que, além de inferiorizarem o papel das mulheres na sociedade, representam-nas de forma depreciativa, como pessoas passivas, cujos corpos podem ser facilmente explorados, porque são tratados apenas como objetos eróticos.
São representações do feminino a serviço do desejo masculino, nas quais a figura feminina, alienada do próprio desejo e do controle sobre o seu corpo, permanece, no dizer de Funck (2002), “aprisionada em papéis dicotômicos de amante submissa ou de perigosa de devoradora de homens” (p.1).
Ao invés de se tornar campo de experimentação da individualidade da mulher, o corpo feminino é retratado como propriedade de um outro, geralmente um outro com olhar sexista sobre esse corpo.
Uma demonstração explícita, senão esdrúxula, da ditadura do corpo pode ser lida em uma matéria do portal Ego, pertencente ao Globo.com, publicada em 28 de julho de 2011, sob o título “Tá tomando fermento? Ex-BBB Paulinha aparece rechonchuda em boate”, na qual a referida ex-participante de reality show é criticada por estar “rechonchuda” e porque “ainda está muito longe da boa forma” (grifos meus).
Corpos atestados como maus. Isso remete a um tempo quando já foi normal falar que os cabelos crespos das pessoas negras eram “ruins”. Foi? Em artigo publicado no jornal O Globo, em 07 de maio de 2008, o jornalista e escritor Zuenir Ventura comentou entrevista dada pelo então jogador de futebol, Ronaldo Fenômeno, ao Fantástico, quando surgiu o “‘escândalo’ envolvendo travestis e extorsão(i)" e a questão veio à tona.
Nesse artigo, denominado A Falha do Ronaldo, Ventura critica o cabelo do jogador: “Acho que fez bem em ir à televisão, embora devesse ter raspado a cabeça. Aquele cabelo bombril parecendo tingido me fez entender o que ele disse uma vez, causando polêmica – que tinha ‘cabelo ruim’” (p. 7). Apesar de não envolver repúdio à estética de uma mulher, isso mostra como o controle sobre os corpos de populações discriminadas é ostensivo neste país, inclusive nos meios de comunicação.
Em 16 de setembro de 2011, o site Virgula, pertencente ao UOL, listou personalidades que tiveram um dia de cabelo ruim, alcunhado “Bad hair day”, entre as quais consta a atriz Whoopie Goldberg, com tranças afro simples, utilizadas por muitas mulheres negras. Sob a foto da artista, o texto legenda trazia um juízo estético-moral: “assuma o black power, gata! Essas trancinhas são realmente feias”. A submissão das estéticas negras a outras estéticas é parte de um debate antigo e estigmatizador, que tem trazido sofrimento a gerações de mulheres e homens negros brasileiros, cujo corpo é negado desde o período colonial.
Na contemporaneidade, em que a identidade negra é rediscutida e valorizada, tal histórico gera uma zona de tensão. No entendimento de Gomes (2002), a identificação do cabelo das pessoas negras como “ruim” é uma expressão das desigualdades raciais que tendem a dominar a população afro-brasileira.
É praxe das mídias menos atentas à pluralidade do feminino reforçar estereótipos sobre o que é ou não ser mulher. As referências visíveis de mulher tendem a remeter apenas às brancas, abastadas e magras, ignorando que há as negras, indígenas, gordas, lésbicas, pobres, transexuais. Nessa última dimensão, na qual se demonstra que nem a biologia nem a anatomia determinam o que é uma mulher, o peso de uma suposta “verdade” prepondera e discrimina.
No dia 18 de janeiro de 2011, outra participante de reality show foi eliminada. Não seria nada demais na rotina desse tipo de programa, a não ser porque a rejeição do público poderia estar calcada em um preconceito: o jornalista Neto Lucon argumenta, em especial para o site e revista A Capa, que ela incomodava: “ela é uma mulher transexual, fato noticiado pelos meios de comunicação, mas ela não se preocupava em informar aos demais concorrentes no claustro televisionado, o que foi ‘malvisto’ por alguns telespectadores”. (http://acapa.virgula.uol.com.br/cultura/opiniao-ariadna-incomoda-porque-existe/3/90/12550).
Por quê o público achava que ela deveria anunciar sua condição de gênero, um aspecto puramente íntimo? Porque desqualificava sua identidade como mulher, prática extremamente danosa à identidade de qualquer uma, biológica ou não.
Ainda perdura em nossa sociedade uma percepção sexista, oriunda de uma visão limitante sobre o ser humano, porém reproduzida acriticamente em boa parte das mídias, de que algumas pessoas são legítimas, outras não. Essa pré-concepção não é inócua, tem estimulado a negação de vários corpos e, consequentemente, uma negação de humanidade.
Remodelando nas redes sociais
Como espaços alternativos de sociabilidade, as redes digitais têm possibilitado a propagação, com menos intermediários e para uma audiência relativamente grande, de contradiscursos acerca de regras estabelecidas de comportamento e de modelos fixos de identidade.
Alguns sites, em especial os de cunho feminista, como a Universidade Livre Feminista, o Blogueiras Feministas e o do Geledés Instituto da Mulher Negra, este com enfoque aprofundado nos aspectos étnico-raciais, têm disseminado uma série de artigos e opiniões questionando a legitimidade do discurso monotemático sobre feminilidades, os quais outrora se restringiam ao mundo acadêmico: cultura, mídia, política, relacionamentos, saúde, trabalho e violência são temas ressaltados, que posicionam as mulheres como protagonistas digitais e as estimulam a se tornarem atores sociais no mundo físico.
No âmbito das mídias que utilizam esse recurso, vale citar o Mulher 7x7, da revista Época, no qual sete colaboradoras suavizam o tom adotado pelos sites supracitados, adotando um discurso intermediário de independência, para tratar de ideários de saúde, moda e beleza, no cotidiano de mulheres.
Nessa publicação, excetuando-se receituários sobre comportamento corporativo idealizado ou relatos afetivo-sexuais, encontrados em quaisquer outras mídias voltadas ao público feminino, podem ser destacadas matérias contendo sérias discussões contemporâneas, como “É hora de queimar sutiãs para valer?”, de 22 de abril de 2010, sobre o livro “Enlightened Sexism”, da pesquisadora de gênero Susan Douglas, o qual denuncia a camuflagem do sexismo moderno, que não se assume como tal e reitera, nos meios de comunicação, imagens de mulheres poderosas e bem-sucedidas, porém ignora o fato de que ainda não há igualdade entre homens e mulheres, ao mesmo tempo em que exige que as mulheres sempre se superem.
No universo virtual, para além de websites, destacam-se os blogs, nos quais os indivíduos- podem publicizar seus pensamentos a público maior do que em outros contextos, por meio de postagens, sem compromissos laborais ou linhas políticas fixas.
O microblog Twitter, estimulando a postagem de mensagens curtas com até 140 caracteres (tweets), abriu um campo extraordinário para difusão de opiniões, e tem sido utilizado por parte considerável dos meios de comunicação, e por diversos comentaristas, para difusão rápida e imediata de notícias, contatando diretamente os leitores virtuais.
A filóloga cubana Yoani Sánchez, utilizando-se do Twitter e de seu blog Generación Y para retratar o cotidiano e a política de seu país, destaca-se internacionalmente como fonte, tendo sido indicada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2008 (HIJUELOS, 2009, p. 31).
A blogueira não se omite na discussão sobre o papel das mulheres em sua sociedade, criticando desde o tradicionalismo da Federación de Mujeres Cubanas (FMC) até o mercado de compra e venda de cabelos, capital de muitas mulheres no país, segundo Sánchez, que os vendem quando estão em situação financeira difícil.
Texto de Letícia Assis, com colaboração de Yasmyn Ferraz, no Blog das Garotas, comenta o orgulho que elas têm de serem “gordinhas” e defende que ser assim não mais seja visto como um defeito. O teor carinhoso nos discursos acerca da obesidade, patente na adoção do diminutivo, tem-se tornado comum nas redes sociais, a exemplo da comunidade Gordinhos e Gordinhas do site de relacionamentos Facebook.
Na mesma rede social, a comunidade Mulher Negra Consome propõe uma discussão sobre o direito das mulheres negras de serem melhor retratadas no campo da estética comercial e midiática, reclamando por marcas e produtos voltados a elas, hoje escassos, e criticando a falta de modelos negras em editoriais de moda e na publicidade. A comunidade também disponibiliza espaço para denúncias e protestos contra o sexismo e o racismo.
Ainda, o grupo aberto Feministas e Feminismo em ativismo digital é característico da remodelagem de conceitos sobre relações de gênero propiciada pelas mídias e redes sociais. Atualmente com 496 membros, promove ativismo online em prol do fim da violência contra as mulheres.
Seria exaustivo enumerar as milhares de narrativas, senão milhões, que se tem propagado nas redes sociais. A temporalidade imediata do mundo virtual e sua capacidade de gerar espaços para que mais autores possam tornar seus textos públicos são recursos estratégicos para a consolidação de uma democracia efetiva, na qual possa ser conhecida a pluralidade de vozes e imagens de e sobre mulheres, todas as mulheres.
Referências
FUNCK, Susana Borneo. Descolonizando a sexualidade feminina: as marionetes e as vampiras de Angela Carter. In: Gazzola, Ana Lúcia; Duarte, Constância Lima; Almeida, Sandra Goulart. (org.). Gênero e Representação em Literaturas de Língua Inglesa, v. 4. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2002. pp. 45-51.
GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. Tese de doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.
HIJUELOS, Oscar. Yoani Sánchez. Time, 30/04/2009. p. 31.
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: H.B. HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e Impasses: o Feminino como Crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. pp. 206-242.
VENTURA, Zuenir. A falha do Ronaldo. O Globo, 07/05/2008. p. 7.
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*Jaqueline Gomes de Jesus é psicóloga, doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB) e professora do Centro Universitário Planalto do Distrito Federal (UniPlan).
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(i) As discussões no caso da extorsão não priorizaram o fato de o jogador ter traído a noiva, mas de supostamente manter relações com travestis. O debate retrata o nível acentuado de estigmatização a que são submetidas as travestis, em que o relacionamento com elas é tido como abjeto.
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